RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Escuta
clínica na pandemia

A coletânea “Gestos, Memórias e Narrativas da Escuta Clínica Permeada pela Tecnologia da Informação e da Comunicação”, lançada pela Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS, apresenta cartas escritas por psicólogas/os e estudantes de Psicologia, selecionadas por meio de Edital de Chamamento Público. São relatos sobre a reinvenção das práticas da escuta clínica no contexto da pandemia em diferentes espaços de cuidado em saúde mental. Confira trechos de algumas dessas cartas:  

“Gosto da ideia de pirataria pois, nas lendas, piratas são sempre um elemento surpresa. Estava tudo indo bem, até que… piratas apareceram. Em minha experiência, esse poderia facilmente ser um resumo do trabalho clínico. Seja na modalidade presencial ou on-line, o inesperado é sempre uma possibilidade latente; aliás, potente. De brinquedos de crianças a lendas assustadoras para adultos, a invenção também é outro elemento que permeia as histórias de piratas. Nesse sentido, o que é a clínica psicológica se não um espaço para (re)inventar o mundo? [...] No final das contas, o esforço da Psicologia na clínica é, não menos, criar espaços nos quais as pessoas possam existir nas suas mais variadas formas de ser e estar no mundo. Isso não ignora que piratas, ou profissionais da Psicologia, devem preparar-se tanto quanto possível para se aventurarem nos mares, sejam eles metafóricos ou não. Mas abre espaço para experimentar modos de estar no mundo desde a singularidade de cada pessoa”. 

Euge Helyantus Stumm | CRP 07/35206  

 

“A imagem do paciente congelada na tela. A incerteza se o problema é aqui ou se é lá. Precisar perguntar tantas vezes “tu tá me escutando?”, “tu me ouves?”. É uma pergunta tão significativa, essa. Quantas vezes aqueles a quem escutamos na clínica não se perguntaram isso na intimidade de seus pensamentos. O quanto já duvidaram de nossa capacidade de compreensão de suas dores e de suas angústias? Nunca é fácil se deparar com a alteridade. O espaço entre um e outro, mesmo compartilhando uma sala de atendimento, sempre denuncia a impossibilidade de compreensão absoluta. O que dizer desse contexto em que corpos estão a ruas, a bairros, a cidades, a fusos horários de distância? “Tu tá me escutando?” Agora essa frase pode ser dita tão claramente, com uma pretensa neutralidade. Como alguém que, de fato, só se questiona acerca de possíveis problemas tecnológicos. É uma inocência disfarçada, contudo. Nenhuma palavra é pronunciada em vão. No fim, queremos saber se há presença do outro lado. Se há, sim, vida”. 

Chrystian da Rosa Kroeff | CRP 07/25302  

 

“Despeço-me por aqui Lélia, depois de partilhar contigo tantas indignações e urgências que precisam ser ditas neste clinicar frente a uma pandemia. [...] Faço desta carta um manifesto e afirmação, advertindo que mesmo que tentem nos silenciar, nossas vozes, nossas histórias não se encerrarão em nós. Elas nos transpassam, nos transitivam (Sant’Anna, 2020) fazendo transgredir, rachar, trair e quebrar tantas vezes quantas forem necessárias as estruturas cimentadas pelos projetos coloniais, racistas e sexistas de repressão e dominação. Este é meu compromisso companheira! Encerro esta correspondência esperançoso enquanto te escuto em tantas vozes pretas, afinal, nunca coubemos no silêncio”. 

Ademiel de Sant’Anna Junior | CRP 07/22834  

 

“Taís, em março de 2020, chegaram tempos estranhos e difíceis. Ir para a escola tornou-se perigoso. Estar entre amigos como gostarias e tanto necessitavas não era possível. Onde armaríamos nossas despedidas e chegadas? Testemunhaste com olhar curioso minhas tentativas de pôr em funcionamento um consultório em casa. [...] Um dia anunciaste com voz de exploradora: mãe, achei um tesouro escondido! Trazia nas mãos alguns dos meus materiais de trabalho. Achaste uma caixa que ficava embaixo da minha mesa de trabalho. Coisas de quem escuta crianças: massinha de modelar, papel, lápis colorido, tinta. Pintamos: rastros de cores a borrar ainda mais a tênue linha que separava o consultório em casa do espaço doméstico. Mãe, as crianças brincam contigo no computador?” 

Veronica da Silva Ezequiel | CRP 07/24825  

 

“Pude perceber que nada substitui o encontro. A presença. O olhar. O corpo. Mas também pude experienciar momentos em que o ‘encontro on-line’ contemplou todas as dimensões que um ‘encontro presencial’ contemplaria, deixando nítido que o que realmente importa é a abertura para o novo. Uma abertura para o senhor entrar e se juntar na construção de possibilidades de vida e de existência”. 

Charles da Rosa Vieira | CRP 07/29583