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Psicologia na saúde pública e saúde mental: história, memória e vivências

A Psicologia nas políticas públicas, na saúde pública e na saúde mental, reinventa-se, produz diferença, agencia redes coletivas, na fricção, nas intercessões, nas intersecções com e entre outros campos de práxis.
 
Traçando uma linha do tempo, considero a década de 70, como um período incipiente de abertura de caminhos para o trabalho de psicólogas/os em diversas instituições: escolas, unidades de saúde, hospitais gerais e psiquiátricos. Nas escolas iniciaram atividades de consultoria aos professores, avaliação psicológica e atendimento de alunos, nas unidades de saúde e hospitais gerais as ações eram predominantemente dirigidas à população materno-infantil e nos hospitais psiquiátricos eram integrantes das equipes responsáveis pelo tratamento e reabilitação das pessoas internadas. Alguns destes caminhos foram viabilizados por projetos de ensino, pesquisa e serviço, como o Centro de Saúde Escola São José do Murialdo, primeira Residência multiprofissional em saúde comunitária no Rio Grande do Sul.
 
No Murialdo aprendi o exercício da Psicologia, tornei-me psicóloga, entre iguais psicólogos, entre outros diversos profissionais e entre pessoas da população. Uma possibilidade ímpar de experimentar a alteridade. Nesse contexto, também fazia parte de nossa aprendizagem a comunicação uns com os outros: era preciso que o “psicologuês” fosse compreendido por outros profissionais e pelas pessoas da população e vice-versa. Estava incluído nas práticas do Murialdo o incentivo à autonomia das pessoas e como parte do cuidado: aprendíamos a explicar e explicitar as situações para as pessoas.
 
Os anos de 1980 foram os anos de abertura democrática e as psicólogas/os/es estiveram na luta pelos direitos humanos, nos movimentos sociais, na formulação de políticas públicas e na reconstituição do Estado brasileiro. Na 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, foram formulados os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde, promulgados na Constituição de 1988, definidora do arcabouço jurídico do SUS e SUAS. A potência legitimadora das propostas é oriunda do Movimento Sanitário, com origem nos anos 70, na luta contra a ditadura e pela democratização do Brasil, protagonizado pelos movimentos populares de saúde e entidades como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Em 1985 foi criada a Rede Unida, outra entidade referente na saúde coletiva, que articula saberes e práticas populares na produção de ciência e saúde.
 
A institucionalidade do SUS propiciou que se constituíssem novos atores sociais e fossem criados dispositivos de pactuação e deliberação para a práxis de princípios éticos-políticos do sistema: solidariedade entre os entes federados e participação social, num processo de descentralização democratizante.
 
A partir de 1990, o Conselho Nacional de Saúde, que existia desde 1937, e as Conferências Nacionais de Saúde, realizadas desde 1941, passaram a ser deliberativas - antes eram consultivas - e paritárias, com 50% dos conselheiros e dos delegados conferencistas sendo representantes da sociedade civil. Os conselheiros da sociedade civil tornaram-se atores sociais decisivos na construção, fortalecimento e defesa do SUS. As/os psicólogas/os participaram na criação de conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde.
 
Na estruturação tecno-assistencial do SUS para a produção de atenção integral no sistema e de saúde no cotidiano do trabalho são marcadores: os processos de municipalização (1990-2006) e de regionalização (a partir de 2006); a implantação na Atenção Básica, a partir de 1994, da estratégia da saúde da família (ESF) com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), apoiada de modo matricial pelos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs) de 2008 a 2019; as concepções, modelagens e modos de co-gestão e de cuidados em territórios sócio-subjetivos, em redes regionalizadas configuradas por serviços e linhas de cuidados contínuos, formuladas e implementadas a partir dos anos 2000, cujos principais referentes são as políticas do HumanizaSUS, de Educação Permanente e de Atenção à Saúde no Ministério de Saúde até o golpe de 2016.
 
O Governo Federal eleito em 2018 instituiu uma necropolítica neofascista, geradora de mortes, destruidora de políticas públicas inclusivas, do patrimônio cultural e ecológico brasileiro e violadora de direitos. O desmonte de políticas públicas exige resistência dos demais entes federados, da comunidade científica, dos movimentos sociais e sociedade, na defesa da vida, na invenção de cuidados. O CNS assume um papel protagônico na defesa do SUS, assim como a Rede Unida, a Abrasco e o Cebes que, em conjunto com outras entidades, criam em 2020 a “Frente pela vida” e em 2022 convocam a I Conferência Nacional Livre, Popular e Democrática da Saúde para 5 de agosto.
 
A sindemia a partir de 2020 impactou a vida em seus diversos âmbitos e ressignificou o SUS para os brasileiros. A Associação das Vítimas da Covid-19 (Avico) e a Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 - Vida e Justiça são exemplos das iniciativas realizadas para amparar as populações mais atingidas pela Covid-19 no Brasil, moradores de periferias, jovens negros/as, mulheres, povos tradicionais e trabalhadores/as da saúde.
 
 
Saúde Mental
 
No contexto da democratização do país, o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental é o ator fundante da Luta Antimanicomial, ao decidir no seu Encontro em Bauru, em 1987, criar o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, com a consigna “Por uma Sociedade sem Manicômios”, e a definição do dia 18 de Maio como o dia nacional da luta por uma sociedade sem manicômios. No Rio Grande do Sul o movimento constituiu em 1991 o Forum Gaúcho de Saúde Mental. Desde sua criação o Movimento é decisivo na Reforma Psiquiátrica brasileira tanto impulsionando-a, defendendo-a quanto denunciando os retrocessos impostos e violações de direitos praticados por instituições e governos. A Marcha dos Usuários em Brasília, 2009, reivindicando a realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, é um marco na saúde mental.
 
Em consonância com a participação social do SUS, as Conferências Nacionais são espaços deliberativos para avaliação, para proposições para a Política Nacional da Saúde Mental e para manifestações de apoio e de repúdio em relação à mesma. Um espaço privilegiado para o protagonismo dos usuários e familiares, que por séculos estiveram silenciados, e desde sua segunda edição a participação dos usuários e familiares tem sido efetiva e crescente.
 
Identifico três momentos na história da reforma psiquiátrica brasileira um de abertura instituinte, outro de avanço da institucionalidade e um terceiro de retrocessos e resistência.
 
Quanto ao momento instituinte, destaco a intervenção na Casa de Saúde Anchieta em Santos em 1989; as políticas municipais de saúde mental em municípios como Porto Alegre, Alegrete, São Lourenço do Sul, Novo Hamburgo, entre outros, no final dos anos 1980 e início dos 1990, e as políticas municipais de saúde mental com a criação de serviços substitutivos. Dez anos depois, a Portaria 336/2002 estabelece as modalidades de CAPS por porte, abrangência populacional, faixa etária (criança e adolescente) e agravo (álcool e outras drogas).
 
O avanço continua com:
 
• a aprovação da Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica 10.216/2001, após 12 anos de tramitação no Congresso, sendo o RS o primeiro estado a aprovar Lei Estadual da Reforma Psiquiátrica (Lei 9.716/1992);
 
• a instituição dos Residenciais Terapêuticos, em 2000;
 
• a promulgação da Lei do Programa de Volta pra Casa, que instituiu o auxílio reabilitação, em 2003, com o programa da redução dos leitos de longa permanência, configurando o tripé do processo de desinstitucionalização;
 
• a inversão do financiamento dos hospitais psiquiátricos para os serviços substitutivos de saúde mental em 2006, em que, pela primeira vez, a maior parte dos recursos financeiros da saúde mental foram destinados aos serviços substitutivos e não mais para os hospitais psiquiátricos;
 
• a ampliação, diversificação, complexização das ações e serviços substitutivos de saúde mental, incluindo projetos intersetoriais com a cultura, economia solidaria, habitação, assistência social, educação, ciência e tecnologia, durante a primeira década de 2000;
 
• o desenvolvimento de tecnologias de cuidado, como acompanhantes terapêuticos (ATs), Redutores de Danos (RD), Grupos de Ouvidores de Vozes, a Gestão Autônoma de Medicamentos (GAM), Grupos de Apoio e Suporte Mútuos;
 
• a mobilização de estratégias de articulação e integração entre Atenção Básica de Saúde e Saúde Mental para o cuidado nos territórios em redes de atenção;
 
• com a publicação em 2011, da portaria da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial).
 
Como marcadores do momento de resistência e retrocessos destaco:
 
• a publicação em 2011 do Relatório da 4ª. Inspeção Nacional de Direitos Humanos a locais de internação para usuários de drogas, efetivada pelo Conselho Federal de Psicologia;
 
• em 2015, o Movimento Social ocupou a sede da coordenação de saúde mental do Ministério de Saúde por 121 dias em protesto pela nomeação de um coordenador manicomial;
 
• a partir do golpe de 2016 e das eleições de 2018 a política de saúde mental antimanicomial, foi sistematicamente atacada e medidas manicomiais foram tomadas como financiamento de comunidades terapêuticas e de hospitais psiquiátricos;
 
• em 2019, é criada, na esfera federal, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. No Rio Grande do Sul foi reinstalada a Frente Estadual em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial;
 
• na 16ª Conferência Nacional de Saúde, em 2019, é aprovada a V Conferência Nacional de Saúde Mental;
 
• em novembro de 2020, o Ministério da Saúde tentou revogar quase 100 portarias da Saúde Mental, numa ação que ficou conhecida como revogaço;
 
• em dezembro de 2020, foi criada, por iniciativa de um usuário, a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial (FASM), a qual impediu o "revogaço" e realizou em 2021 a 1ª Conferência Popular Nacional da Saúde Mental Antimanicomial.
 
 
A sindemia, a partir de 2020, impactou a vida em seus diversos âmbitos, ressignificou o SUS para os brasileiros e a saúde mental se tornou uma questão social. Muitas iniciativas foram tomadas desde os serviços substitutivos de saúde mental, dos movimentos sociais, dos grupos de pesquisa em saúde mental, residências multiprofissionais, entidades profissionais, associações de usuários e de organizações não governamentais para dar continuidade ao cuidado em liberdade tanto presencial como on-line.
 
Ressalto que a cultura e as artes são determinantes de subjetivações e processos emancipatórios, assim como o trabalho e a geração de renda. Um marco nesta direção foi a portaria interministerial 1.169 de 2005 entre os Ministérios da Saúde e do Trabalho e Emprego, as quais instituíram um programa de parceria entre Saúde Mental e Economia Solidária, o qual alavancou mais de 600 projetos em todo o país, como a experiência da GeraçãoPoA de Porto Alegre.
 
Os desafios a enfrentar no SUS e na reforma psiquiátrica estão em múltiplos âmbitos: ético-político (diante de políticas que consideram saúde mercadoria, que a vida vale para alguns e que criminalizam a população pobre, negra, lgbtqia+, de mulheres e povos originários); estrutural (com o desfinanciamento do sistema, empresariamento na gestão e atenção e consequente precarização do trabalho); conceitual (com a patologização e medicamentalização da vida, numa cultura dos especialismos médico-hegemônicos); e operacional (com a indução para realização de procedimentos e não atendimentos integrais).
 
Sandra Maria Sales Fagundes
Psicóloga psicanalista (CRP 07/01644), mentaleira do Forum Gaúcho de Saúde Mental, professora convidada da RIS Saúde Mental Coletiva da UFRGS e do Mestrado em Saúde Mental da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Ex-Secretária do Estado do Rio Grande do Sul.