REPORTAGEM PRINCIPAL

 
Há 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
institucionalizou o conceito moderno de direitos humanos fundado na ideia de
que cada indivíduo, em qualquer lugar do mundo, é titular de direitos e de dignidade e,
em razão disso, merece respeito e proteção. Esses conceitos foram, posteriormente,
incorporados à nossa Constituição Federal – que completou 30 anos este ano –
e sustentam o próprio aparato legislativo da profissão de psicóloga/o, como o Código de Ética.
 

 

Na sua prática psicológica:
onde estão os direitos humanos?
 

O Código de Ética da/o Psicóloga/o – que orienta toda e qualquer prática profissional, independentemente da área de atuação – traz em um de seus pressupostos básicos o indicativo de que o trabalho deve ser embasado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Os direitos humanos oferecem um horizonte ético para nortear a atuação profissional, devem ser entendidos como guias para a escolha de nossos modelos teóricos e para a adoção de práticas”, explica o psicólogo Ângelo Brandelli Costa, doutor em Psicologia, professor da PUCRS e conselheiro do CRPRS.
 
Considerando isso, pode-se afirmar que a Psicologia tem ferramentas para o trabalho de redução de conflitos, comunicação não violenta, habilidades sociais e emocionais, de forma a garantir a segurança social e a paz. Segundo Ângelo, “a profissão possui arcabouço para atuar na mitigação dos efeitos das violações de direitos humanos, desde o trauma psicológico até o trabalho com a memória coletiva em situações de emergências e desastres”. Práticas que se propõem a curar a homo e a transexualidade são exemplos de uma atuação desvinculada dos direitos humanos por produzirem sofrimento ao não atingir seus objetivos e não reconhecer a diversidade sexual e de gênero como naturais. “Essa é uma violação do direito a não-discriminação, dignidade, liberdade e identidade,  além da compreensão contemporânea de direitos sexuais enquanto direitos humanos.”
 
Embora a pauta dos direitos humanos esteja muito associada à diversidade humana, não está restrita a ela. Existem outros direitos fundamentais que têm relação direta com práticas psicológicas em todos os espaços onde as/os profissionais de Psicologia atuam. “Psicólogas/os que atuam nas políticas públicas, sejam elas de Assistência Social, Saúde, Educação e Justiça, por exemplo, devem estar comprometidas/os com o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que versa sobre o direito à subsistência material, já aquelas/es que trabalham nas Redes de Atenção Psicossocial devem atentar para os direitos de liberdade, pensando no cuidado em liberdade e em comunidade. Além disso, o Sistema Conselhos de Psicologia tem se comprometido com os direitos de não-discriminação e de igualdade, de forma a garantir atenção e saúde livres de preconceito para grupos sociais que são socialmente estigmatizados”, afirma Ângelo Brandelli Costa.
 
Para o procurador da República e professor de Direito da UFCSPA, Paulo Leivas, os direitos humanos estão presentes no dia a dia de todas/os as/os profissionais da saúde. A Bioética, por exemplo – disciplina obrigatória na formação de muitos cursos da área da saúde – pode e deve ser pensada com base nos direitos humanos: “questões relativas aos princípios bioéticos da autonomia e da justiça podem ser pensadas sob a ótica dos direitos humanos, da liberdade e da proibição de discriminação”. Além disso, as/os profissionais da saúde trabalham com pessoas e grupos vulneráveis especialmente protegidos pelos instrumentos e instituições de defesa dos direitos humanos. 
 

 

Assim, a/o psicóloga/o deve estar atenta/o ao contexto que leva o sujeito a procurá-la/o, considerando suas condições de inserção no mundo, os processos históricos e sociais que permeiam tal inserção. “O racismo, a violência de gênero, o capacitismo, a lgbtfobia, a criminalização ou estigmatização da pobreza, entre outras formas de exclusão e deslegitimação das diferenças, não são necessariamente assuntos para especialistas em direitos humanos. O desafio está em materializar esses temas a partir de uma determinada forma de se pensar a violação e a promoção de direitos nas práticas com a subjetividade. Para além dos enunciados legais sobre direitos humanos, precisamos conceber e atuar com as subjetividades num registro de diversidade. Por isso, entendo que é necessário que nossa atuação esteja inscrita em uma defesa do direito à existência na diversidade dos processos imbricados na construção dos contextos violentos ou violadores de direitos em que aquele(s) sujeito(s) está(ão) inserido(s)”, analisa a psicóloga Cristina Schwarz, que atua na Defensoria Pública do Estado do RS e na área da Psicologia Clínica. Para Cristina, os saberes psi são herdeiros epistemológicos da noção de neutralidade. “O efeito disso são práticas que se sustentam sobre um saber psicológico que se enuncia reforçando discriminações, invalidando certos modos de vida ou reificando um modo de ser sujeito que não contempla a pluralidade.”
 
A pretensa neutralidade da Psicologia também é destacada pela psicóloga Cecília Coimbra, coordenadora da primeira Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Para ela, pensar  em direitos humanos não é ser um especialista no tema, é estar vinculado a essas questões de uma forma crítica. “Quando falamos em Psicologia e direitos humanos, queremos pensar uma Psicologia que efetivamente não se desvincule da política, que não se coloque como neutra, como uma coisa abstrata, afastada da realidade. Queremos falar sobre uma Psicologia voltada para a prática na qual está inserida, preocupada com o mundo.”
 
Cecília Coimbra lembra que os direitos humanos surgiram como uma invenção da burguesia e tiveram seu conceito fortalecido durante a Revolução Francesa e no Pós-Guerra. Diante disso, é preciso pensar em direitos humanos para todos e não somente para alguns segmentos sociais. “Os direitos humanos sempre foram negados àqueles sujeito dito como perigosos e a periculosidade está vinculada à pobreza e à negritude.”
 
Em 1962, quando a profissão foi criada, a Psicologia nasce com uma marca bem definida: disciplinar sujeitos. “Numa tentativa de despolitização da realidade social, o psicólogo é aquele que vai tratar o  interior das pessoas, a essência. O indivíduo é visto como um ser a-histórico e o profissional psicólogo se coloca como neutro”, lembra Cecília. “A Psicologia, naquele período, andou de mãos dadas com a Ditadura Civil-Militar Brasileira, serviu, com algumas exceções, para rotular, patologizar os militantes políticos da época. É no final da Ditadura, nos anos 1980, que começa a surgir uma Psicologia questionadora que se vincula a alguns movimentos sociais, culminando no final dos anos 1990 com a criação da Comissão de Direitos Humanos pelo CFP.”
 
No CRPRS, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) passou a existir em 1998 e se mantém ativa até hoje. Essa comissão pautou diferentes demandas relativas à profissão nesse tempo, como a atenção psicológica às populações minoritárias e consideradas em situação de vulnerabilidade, que precisam de proteção, especialmente as crianças e adolescentes, idosos/as, indígenas, negros e negras, LGBTs. “Sempre se ressaltou a necessidade de descriminalização dos movimentos sociais, fortalecimento de políticas sociais públicas e de escuta qualificada para as pessoas envolvidas em conflitos ligados à terra, à moradia, à violência urbana e rural e aos direitos básicos de sobrevivência”, explica a psicóloga Priscila Pavan Detoni, conselheira do CRPRS e atual presidente da CDH.
 
A relação entre Psicologia e Direitos Humanos se fortaleceu no Brasil ao final do período da Ditadura Civil-Militar. Para a conselheira Fernanda Facchin Fioravanzo, a participação das/os psicólogas/os em movimentos como o da Reforma Sanitária em defesa do acesso universal à saúde – que deu base à consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) – referenda a luta da profissão pela garantia da dignidade humana. “Quando as/os psicólogas/os passam a se inserir nas políticas públicas, essa relação se evidencia, já que a salvaguarda dos direitos fundamentais é o sustentáculo dessa perspectiva de atuação. Porém, é preciso considerar que as demandas que chegam ao consultório particular, por exemplo, são expressões da questão social que devem ser acolhidas sob a ótica dos direitos humanos.”
 
 
 
 
Roger Raupp Rios, doutor em Direito e desembargador do TRF4, considera que a Psicologia deve compreender o contexto de vida em sociedade democrática, em que a dignidade de cada um – nas  suas diferenças e semelhanças – e as liberdades sejam afirmadas. “Esse contexto é um pressuposto para que se exerça a profissão de forma integradora, solidária e respeitosa. Isso significa valorizar os direitos humanos, respeitar a pluralidade, as diferentes visões de mundo de quem busca apoio psicológico, seja individual, clínico, institucional ou coletivo”.
 
Para o desembargador, o desenvolvimento da profissão e o avanço ao respeito, à individualidade e à privacidade foi paulatinamente vencendo os preconceitos que existiam em relação a mulheres, pessoas idosas, crianças, homossexuais, transexuais, pessoas pertencentes a outras etnias. “Vencer esses preconceitos, essas falsas e inadequadas representações significa, portanto, não mais estar refém delas. O debate relacionado à chamada cura gay, por exemplo, foi superado pela experiência científica. Hoje, quando se pensa em uma atuação institucional, como os Conselhos de Psicologia, todas as normativas – seja a DUDH, a Constituição de 1988, legislação, resoluções, Código de Ética – não dão espaço para manutenção de posições que não valorizam os avanços conquistados nessa trajetória de superação de preconceitos.”
 
A Psicologia deve, portanto, estar atenta a essas conquistas, respeitando os direitos de ir e vir em condições de igualdade e o reconhecimento da diversidade. “É necessário pensarmos em maneiras de eliminar as barreiras (atitudinais, comunicacionais e físicas/arquitetônicas), especialmente se tratando de pessoas com deficiência”, avalia a psicóloga Mariane Teixeira Netto Rodrigues, conselheira do CRPRS.
 

“QUANDO FALAMOS EM PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS, QUEREMOS PENSAR UMA PSICOLOGIA
QUE EFETIVAMENTE NÃO SE DESVINCULE DA POLÍTICA, QUE NÃO SE COLOQUE COMO NEUTRA,
COMO UMA COISA ABSTRATA, AFASTADA DA REALIDADE. QUEREMOS FALAR SOBRE UMA
PSICOLOGIA VOLTADA PARA A PRÁTICA NA QUAL ESTÁ INSERIDA, PREOCUPADA COM O MUNDO.”

Cecília Coimbra

 

Direitos ameaçados

Frases como ‘direitos humanos para humanos direitos’, ‘bandido bom é bandido morto’ são cada vez mais repetidas em nossa sociedade. “As pessoas sequer compreendem a origem liberal dos direitos humanos, não sabem que liberdades econômicas, direito de ir e vir, liberdade de imprensa são direitos humanos. Direitos sociais, como os direitos à saúde e à educação, também são direitos humanos. Estamos em um momento em que muitas pessoas são movidas pelo ódio contra o diferente e ódio contra os direitos humanos. Precisamos de uma grande mobilização nacional para uma educação em direitos humanos”, afirma Paulo Leivas.
 
Para o advogado criminalista Roque Soares Reckziegel, coordenador adjunto da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS e vice-presidente do Fórum Interinstitucional Carcerário, há uma espécie  de tolerância da sociedade com maus tratos, abusos e tortura das pessoas em situação de reclusão no Sistema Prisional. “O senso comum preconiza que não há nenhum problema com superpopulação carcerária, ausência de equipamentos sanitários adequados, alimentação equilibrada, assistência médica, pois vinga a ideia de que eles merecem sofrer em face dos crimes praticados.”, acredita. 
 
O contexto social atual, com a ascensão de propostas autoritárias e regressivas de direitos, preocupa.“Subjetividades intolerantes, fundamentalistas, agressivas em que o ódio e a desqualificação do que é diferente predominam, onde a diferença tem que ser extinta. Mais do que nunca, o psicólogo deve se colocar ao lado dos direitos humanos, não de forma abstrata, mas de forma concreta, defendendo que toda e qualquer pessoa tem direitos que precisam ser respeitados. Isso não é uma posição político-partidária, é uma posição ético-política. A questão dos direitos humanos hoje se coloca como sobrevivência da humanidade e nós temos que estar nessa luta”, afirma Cecília Coimbra.
 
 
 
-> Assista ao vídeo produzido para a EntreLinhas com depoimento da senadora Marta Suplicy, que é psicóloga, falando da relação de Direitos Humanos e Psicologia. Assista: https://bit.ly/2R3Cm8A
 

-> A doutora em Psicologia Cecilia Coimbra fala sobre as subjetividades fascistas disseminadas em nossa sociedade nos dias de hoje. Ouça: https://bit.ly/2rDVmfm

-> Doutor em Direito e desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Roger Raup Rios, faz resgate histórico sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a evolução do conceito de direitos humanos na sociedade. Assista: https://bit.ly/2SQOAyl

-> Confira entrevista na íntegra de Roque Reckziegel, advogado Criminalista, conselheiro da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul  (ACRIERGS), professor de Direito Penal na Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, coordenador adjunto da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS e vice-presidente do Fórum Interinstitucional Carcerário, sobre Direitos Humanos e Sistema Prisional, disponível em https://bit.ly/2PIUlMF

-> Assista ao curso “Psicologia da Gestão Integral de Riscos e Desastres” disponível no site http://orientapsi.cfp.org.br.  

-> Conheça a campanha #ÓdioNão lançada pelo Conselho Federal de Psicologia em cfp.org.br/odionao.

-> Acesse a página da ONU/BR e saiba mais sobre o tema Direitos Humanos https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/ 

-> Assista a documentário produzido pela United for Human Rights contextualizando a história dos Direitos Humanos https://bit.ly/N4ccNH