ENTREVISTA

A psicóloga Denise Ruschel Bandeira, durante sua rigorosa formação acadêmica,
transitou por diversas áreas do conhecimento em Psicologia – desde neuropsicologia até questões
envolvendo a prática forense. Mas acabou, quase 30 anos depois, voltando justamente para a área que
sempre lhe despertou mais interesse: a avaliação psicológica vinculada ao desenvolvimento infantil. Destino?

“Minha tese foi com crianças, meu doutorado com adolescentes, depois realizei outros estudos na área.
Também estudei muito tempo o Desenho da Figura Humana feito pelas crianças.
Então, parece que era para ser”, diz a profissional, que coordena o respeitado Grupo de Estudo,
Aplicação e Pesquisa em Avaliação Psicológica da UFRGS (GEAPAP). Para não se restringir ao campo teórico,
Denise salienta o termo “aplicação” na sigla do Grupo, concretizado em ações com pais e mães,
professores, agentes públicos e estudantes – tanto de graduação quanto de pós-graduação.
 
Nesta entrevista, Denise fala sobre o processo de desenvolvimento de um instrumento de avaliação,
menciona os projetos mais bem-sucedidos do GEAPAP, explica o salto de qualidade dos testes psicológicos
nos últimos 15 anos e defende a aplicação de instrumentos de avaliação do desenvolvimento infantil
na rede pública de saúde como forma de detectar – e evitar – possíveis estigmas de aprendizado.
“A consulta com um pediatra dotado desse instrumento, num posto de saúde,
pode ser decisiva para rastrear atrasos cognitivos”.
 

Devemos conversar mais 
com nossas crianças


A senhora pode descrever o ambiente atual dos instrumentos de avaliação psicológica? Houve mudanças significativas nos últimos anos, em função do desenvolvimento tecnológico?

Muitas mudanças, mas não só em função do desenvolvimento tecnológico. Quando iniciei minha carreira de pesquisadora [por volta de 1995], ao construir um instrumento de avaliação fazíamos pesquisa bibliográfica, criávamos algumas perguntas, aplicávamos análises estatísticas e estava criado o instrumento. Havia pouca base teórica, pouco acesso a formulações teóricas, o que levava frequentemente a resultados imprecisos, pouco confiáveis. No exterior já havia uma preocupação crescente com a forma de construção, mas isso demorou a chegar aqui. Não havia internet, não havia troca de mensagens por e-mail. Hoje há mais preocupação com a qualidade desses instrumentos. Posso dizer que houve sim uma grande evolução. E também a adaptação de testes, que antes eram apenas traduzidos, sem nenhuma preocupação com contexto, avançou bastante. Esses dois fatores, a preocupação com a base teórica e com as adaptações transculturais de qualidade e análises estatísticas mais avançadas, mudaram o cenário na última década. Foi uma verdadeira revolução.
 

A tecnologia também afeta os resultados, na medida em que interfere nos relacionamentos pessoais e no desenvolvimento infantil?

Tecnologia na condução de pesquisas é uma coisa. Promoveu uma diferença enorme nos últimos anos, como mencionei, especialmente por possibilitar o trabalho com grandes amostras. No Inventário Dimensional de Avaliação do Desenvolvimento Infantil (Idadi), desenvolvido aqui na Psicologia da UFRGS, fizemos uma coleta de dados presencial onde havia 800 casos de mães se relacionando com seus filhos e cerca de 1.300 questionários online. Com isso conseguimos dados de vários estados e ampliamos o estudo de forma muito grande. A tecnologia, nesse sentido, alterou muito. Outra coisa é avaliar a tecnologia no relacionamento entre pais e criança. Isso eu não posso avaliar, não sou especialista. Meu foco são os instrumentos de avaliação. 
 

Como se desenvolve um instrumento de avaliação?

Há diferentes formas de construção, mas todas elas devem partir de um bom escopo teórico. Isso é fundamental. Foi o caso, por exemplo, de um instrumento recente desenvolvido para a área forense, que busca avaliar o relacionamento entre os pais de uma criança, ou do seu núcleo familiar, pai-pai, mãe-mãe, seja como for, que está em conflito e onde há uma disputa pela guarda. Até então, o que os psicólogos tinham como instrumento de avaliação? Entrevistas, observação, alguns testes não-específicos etc. Não havia nada específico para instrumentalizar uma avaliação sobre disputa de guarda, que é uma demanda muito presente. Foi o que desenvolvemos aqui: o Sistema de Avaliação de Relacionamento Parental (SARP) reúne um roteiro de entrevistas, um instrumento de expressão infantil – um caderninho para a criança se manifestar livremente, que chamamos de “Meu Amigo de Papel” – e uma escala de pontos para que o profissional da Psicologia ou da Assistência Social proceda a uma avaliação de forma mais científica possível. 

 
 

À primeira vista parece um procedimento simples.

Sim, mas apenas parece. O desenvolvimento demandou quatro anos de pesquisas. O primeiro passo, que já demanda muita discussão, foi  chegarmos à conclusão de que um instrumento específico para essa avaliação era necessário. A partir daí, começamos a problematizar: o que temos de avaliar? O que um pai, ou uma mãe, precisa ter para ficar definitivamente com a criança? E outras questões. Então, buscamos as teorias do desenvolvimento infantil, as teorias do relacionamento familiar, houve entrevistas com profissionais da Psicologia e da Assistência Social, com pais e com mães, com crianças, com juízes, sempre analisando os dados, até montarmos o constructo do instrumento de avaliação com as várias dimensões do relacionamento parental: a dimensão da rotina escolar, do afeto com a criança, do afeto entre o casal, que apoio os responsáveis podem dar à criança, inclusive financeiro etc.
 

A senhora é bastante reconhecida por esses trabalhos sobre desenvolvimento infantil. Como chegou a esse tema?

Além do tema da avaliação psicológica, sempre gostei muito da questão do desenvolvimento infantil, já que antes de ser professora, antes da carreira acadêmica, trabalhei em pré-escolas e em clínicas, com crianças. Mas depois, ao longo da pós-graduação, acabei me dedicando quase que exclusivamente à avaliação psicológica. Nas orientações de mestrado e doutorado, meu foco passou a ser construção e adaptação de instrumentos de avaliação – o que me levou a diversas áreas temáticas, como bem-estar, neuropsicologia, religião. Até psicologia forense, como já mencionei. Ampliei muito os meus estudos a partir dos interesses dos alunos. Mas, com isso, acabava tangenciando a área de avaliação psicológica com crianças. Até que decidi me focar definitivamente na avaliação vinculada ao desenvolvimento infantil. Desde que resolvi me focar mais nisso, seleciono os alunos de mestrado e doutorado para essa linha de pesquisa. Antes disso eu realizei vários estudos que eram com crianças. Minha tese foi com crianças, meu doutorado com adolescentes, depois realizei outros estudos na área. Também estudei muito tempo o Desenho da Figura Humana [teste para crianças]. Na realidade, então, nunca deixei de estudá-las. Era para ser.
 

A senhora pode falar sobre o Inventário Dimensional de Avaliação do Desenvolvimento Infantil?

O Inventário, ou Idadi, ao qual já me referi, é um teste para ser aplicado em pais de crianças de zero a seis anos – ou, mais precisamente, de quatro a 72 meses – que busca detectar problemas de desenvolvimento em relação à faixa etária. Está em processo de refino, são quatro anos de trabalho em cima dele. Construímos aqui no Brasil porque tivemos muitas dificuldades em questões envolvendo direitos autorais de instrumentos já existentes, o que dificultou eventuais adaptações. Bem, diante das dificuldades, veio a pergunta: por que não criamos 
o nosso próprio instrumento? E a conclusão foi que era importante criar um modelo brasileiro de mensuração desses problemas porque as crianças se  comportam de forma diferente em lugares diferentes. As crianças brasileiras não são iguais às crianças dos Estados Unidos, não estão submetidas aos mesmos estímulos ou dificuldades. Algumas questões, obviamente, são universais, independentemente do lugar onde se mora. Mas outras não.
 

Pode citar alguma que chamou mais a atenção?

A linguagem, por exemplo. Aqui no Brasil, por incrível que pareça, as populações de baixa renda se comunicam muito menos com os filhos, falam muito pouco com eles. Então, a qualidade do desenvolvimento da linguagem é diferente nessas populações, tem diferença em relação a outras classes sociais. A diferença é impressionante. E, quanto maior a escolaridade dos pais, maior é o desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, dos aspectos cognitivos. Não quer dizer que em rendas mais altas também não se observe esse fenômeno, não é isso. Nem que isso é determinante ou que toda criança de classe mais baixa tenha esse prejuízo. Mas nas pesquisas com o Idadi os dados mostram: mais do que ir ou não à escola, à creche, a escolaridade da mãe influencia fortemente o desenvolvimento cognitivo das crianças.
 

Isso pode ter relação com o papel subalterno que crianças costumam ter em famílias mais tradicionais?

Não é bem isso. Não se trata apenas de conversar ou não conversar, obedecer ou não. É algo relacionado diretamente à baixa escolaridade: menor escolaridade, menor vocabulário. E tem a ideia de que não é necessário conversar, a criança cresce solta, sozinha, sem ajuda. Isso é muito presente, muitos pais não são instruídos sobre a importância de estar com seus filhos. Por isso tantos programas sociais investem na conscientização do quanto é importante brincar com as crianças. Não é só falar ou mandar nas crianças, volto a dizer: é brincar falando, trocar fralda e alimentar dizendo afetivamente o que está fazendo, explicando cores, descrevendo formas etc. O Idadi vai ajudar muito nesse sentido, detectando atrasos no desenvolvimento. Outra coisa importante foi criar um instrumento em que pais e mães com menos escolaridade possam responder, ou seja, que as perguntas façam sentido para eles.
 

Esses estímulos podem melhorar o desenvolvimento cognitivo das crianças?

Pelo que tenho estudado, fazem muita diferença esses primeiros seis anos da criança que, em geral, são fora da escola. Aí que se vê a importância desses programas oficiais de apoio à família. A importância de brincar, de conversar, de estimular é imensa. Os estudos mostram isso direto.
 

Mostram de que forma?

Se não acontecem nos primeiros seis anos, se esses estímulos são falhos, essas falhas vão se acumulando e aí o desenvolvimento, e consequentemente a capacidade de aprendizagem da criança, é seriamente prejudicado. Mas se a base é boa, se há afeto, o processo é favorecido. Depois que a criança entrou na escola, a contribuição é saber como se dá o processo de aprendizagem, como a criança raciocina, como memoriza, se é bom memorizar, de que jeito. Lamentavelmente, a Psicologia, de certa forma, largou esses assuntos, que também não são atribuições específicas de pedagogos. O cérebro não é o foco deles. É o nosso. Ou seja, temos que contribuir de alguma forma. Na minha opinião podemos instrumentalizar as professoras para essas questões, para a qual elas naturalmente não têm formação.
 

Como o Idadi poderá auxiliar na melhoria do padrão de desenvolvimento cognitivo  de crianças oriundas de famílias de baixa renda? 

Nosso objetivo é oferecer uma versão simplificada, e gratuita, para ser utilizada no âmbito da saúde pública. Percebemos que muitos pediatras não têm esse conhecimento, sobre eventuais atrasos no desenvolvimento infantil, ou mesmo não conseguem detectá-los. Às vezes os sinais não são claros ou as consultas são muito rápidas. E, por outro lado, também há desinformação por parte de mães e pais. A consulta com um pediatra dotado desse instrumento, num posto de saúde, pode ser decisiva para rastrear atrasos cognitivos, de forma que se possa intervir precocemente.
 
 

 

Como a senhora vê a situação atual da avaliação psicológica?

É uma área muito valorizada. A lei que regulamenta a Psicologia lista a avaliação como umas das quatro atividades exclusivas aos psicólogos, ou seja, é um campo dos profissionais da nossa área. Considerando isso, todo psicólogo que se forma deveria ter capacidade de trabalhar com testes e avaliação. Mas os cursos de graduação têm falhado nessa formação específica, pois há uma preocupação com o caráter generalista da Psicologia. Algumas áreas dentro da nossa profissão também questionam os princípios da avaliação, acreditam que se trata de rotular as pessoas, dar-lhes um número. Ou que bota as pessoas dentro de uma caixa, classifica-as para o resto da vida. É uma dicotomia que temos: por um lado, os cursos de graduação deveriam ser muito voltados para a avaliação; por outro, há uma certa desvalorização dentro da própria Psicologia.
 

A mediação por artefatos eletrônicos tem afetado o desenvolvimento infantil?

Os estudos mostram que a tecnologia está aí, não tem como combatê-la. Mas os limites são importantes, de acordo com a idade de cada criança. Assim como o limite que os pais devem estabelecer em relação a seus próprios equipamentos eletrônicos. Momento de brincar é momento de brincar, não é para estar no celular. Mas como brincar? Um tablet pode ser um brinquedo. Então, acho que tem muito a ver com a postura de cada um, com a forma de se relacionar com a tecnologia. Por que não explorarem juntos o equipamento? Estabelecendo essa interação, um celular passa a ser mais um brinquedo – e não o vilão. O que importa é a relação. Podia ser um quebra-cabeças, mas é um tablet. Só que as pessoas não se dão conta disso. Pais que abusam da tecnologia, porque tudo fica de fato mais fácil, não são do mal. Eles simplesmente não sabem como fazer. Estamos estudando aqui o que tem de mais novo, só que esse novo não está chegando lá – nas famílias, onde deveria chegar. Então fazemos palestras, rodas de conversa. Na Clínica de Avaliação Psicológica da UFRGS (CAP) criamos um programa para pais com atendimento, orientação, grupos, palestras em escolas, que é uma forma de ajudar nesse processo do desenvolvimento infantil. Os pais têm uma enorme necessidade de falar sobre isso, de ver que há outros pais passando pelas mesmas dificuldades.
 
Assista ao vídeo com trechos da entrevista da psicóloga Denise Ruschel Bandeira em youtube.com/crprs