REPORTAGEM ESPECIAL

A Psicologia e o modelo social da deficiência

Atitudes capacitistas – ações preconceituosas que discriminam e subestimam a capacidade das pessoas com deficiências – barreiras para acessar políticas públicas e violações de direito ainda são questões presentes no cotidiano das pessoas com deficiência. Considerando o impacto disso nas subjetividades e o compromisso ético e político da Psicologia no enfrentamento à patologização e no combate a diferentes formas de preconceito e discriminação, a profissão é convocada a estar no centro desse debate.
 
Para garantir uma participação mais ativa nas políticas públicas voltadas a pessoas com deficiência, a Psicologia precisa lutar pela efetivação do modelo social. Esse conceito entende a deficiência como uma questão da vida em sociedade e não um problema individual, transferindo a responsabilidade pelas desvantagens das limitações do indivíduo para a incapacidade da sociedade em prever e se ajustar a essa diversidade. Ou seja, o ambiente deve ser adaptado às necessidades e condições dessas pessoas e não o contrário, como defendido pelo modelo médico de deficiência. Não é o limite individual que determina a deficiência, mas sim as barreiras existentes nos espaços, no meio físico, no transporte, na informação, na comunicação, nos serviços e nas atitudes.
 
Os primeiros movimentos mundiais para a construção do modelo social de deficiência surgiram nos anos de 1970. Porém, foi somente com a publicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pela Organização das Nações Unidas (ONU), promulgada no Brasil em 2009, e com a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146), publicada em 2015, é que esse conceito começou a ser difundido no país. Apesar desses importantes marcos legais, observamos que ainda há um longo caminho a percorrer na direção de garantir os direitos das pessoas com deficiência. Outro aspecto importante relacionado a essa compreensão é a inclusão das pessoas com deficiência nas discussões dessas políticas e no enfrentamento das visões corponormativas e capacitistas, seguindo o conceito de “nada sobre nós sem nós”.
 
“No Brasil ainda estamos engatinhando para efetivar o modelo social da deficiência. Ainda há uma predominância do modelo médico e uma resistência muito grande para avançarmos na efetivação do modelo social, principalmente nas políticas públicas”, avalia o psicólogo e conselheiro do CRPRS, Rafael Antônio Carneiro (CRP 07/29069). Para Rafael, a Lei Brasileira de Inclusão representou um importante avanço nesse processo, porém ainda está baseada no laudo médico e não em uma avaliação biopsicossocial. “A avaliação biopsicossocial ainda não foi regulamentada da forma como deve ser. Com isso, a Psicologia acaba não se inserindo de uma forma mais significativa nessa luta. Temos que avançar muito nas discussões para que o modelo médico deixe de ser predominante e que essas avaliações possam ser feitas por equipes multiprofissionais”, explica.
 
 
A psicóloga Vitória Bernardes (CRP 07/17267), mulher com deficiência, militante dos direitos humanos e conselheira do Conselho Nacional da Saúde e do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do RS, lembra do protagonismo da médica Izabel Maior, primeira pessoa com deficiência a comandar a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência de 2002 a 2011, época em que a Convenção foi promulgada no Brasil. “Foi muito importante uma mulher com deficiência ocupar esse lugar de gestão para falar e pensar as políticas da pessoa com deficiência. A Convenção e a Lei da Inclusão reforçam o conceito de deficiência também na perspectiva do modelo social e trazem avanços como a necessidade de uma avaliação psicossocial, diminuindo o peso do modelo biomédico que restringe e individualiza uma questão social, que tira completamente a responsabilidade das estruturas sobre o capacitismo e centraliza uma suposta incapacidade nos corpos das pessoas com deficiência.”
 
Vitória Bernardes ressalta também a importância de se pensar no conceito da deficiência como uma construção social imposta a partir de corpos com determinadas funcionalidades. “É importante reconhecer que pessoas com deficiência nem sempre vão chegar a essa autonomia capitalista imposta mesmo com eliminação das barreiras. Mesmo precisando de cuidados, isso não pode fazer com que seus direitos, enquanto cidadãs e cidadãos, sejam questionados.”
 
A adoção do modelo de avaliação biopsicossocial nas políticas públicas sofreu alguns retrocessos nos últimos anos. “Das mais de 30 políticas públicas cujo foco são pessoas com deficiência, somente duas delas (Benefício de Prestação Continuada – BPC e a aposentadoria) avaliam por meio de um modelo biopsicossocial”, destaca Vitória. Buscando a construção de um instrumento único de avaliação, chegou-se ao Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado – IFBRM, já aprovado pela Universidade de Brasília e validado pelo Conselho Nacional de Direitos das Pessoas com Deficiência (Conade). Porém, conforme relata Vitória, o Governo Federal vem tentando limitar e até mesmo impedir a participação de pessoas com deficiência nessa construção. “Não sabemos que tipo de instrumento está pra ser regulamentado devido a esse processo de afastamento da participação social. Não podemos entender deficiência apenas tendo como base um diagnóstico de CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde). Porém, as políticas públicas, ainda em sua maioria, são acessadas pela apresentação desse CID, reforçando, assim, um modelo biomédico da deficiência. Além disso, com essa falta de padronização nas avaliações, também temos uma dificuldade de entender quem são as pessoas com deficiência no nosso país, quais suas necessidades para se desenvolverem, para estarem em igualdade de oportunidade”.
 
Na opinião de Vitória, a avaliação biopsicossocial colabora para políticas de acesso universal, independentemente de serem destinadas diretamente a pessoas com deficiência. “O modelo social traz a integralidade do sujeito das pessoas com deficiência, mas, para isso, também é fundamental se ter acesso à Saúde e à Educação de forma mais equânime”.
 
Leandro Peratz Gomes, estudante de Psicologia na UFRGS e morador da comunidade do Morro da Cruz, na zona leste de Porto Alegre, relata a falta de ações e investimento voltados a pessoas com deficiência nos últimos anos.
 
“O Brasil, nos últimos quatro anos, não está cumprindo o que o modelo social da deficiência determina. Nós, pessoas com deficiência/s, não temos que nos moldar/adaptar ao ambiente e, sim, a sociedade que tem que se moldar para estarmos incluídos nela. Afinal, as barreiras que enfrentamos são sociais, ou seja, impostas pela sociedade”. Apesar disso, ele cita avanços no campo digital e no mundo acadêmico: “Influenciadores e influenciadoras digitais com deficiência levando informações acerca da temática da deficiência (o que é capacitismo, o que é modelo social da deficiência etc), o que é positivo. Além disso, a chegada de estudantes com deficiência a partir da política pública de cotas (aprovada antes de 2018) tem mudado as universidades. As pessoas com deficiência estão produzindo conhecimento nessa área, sou um exemplo disso”.
 
Para Leandro, a acessibilidade nem sempre é a única dificuldade das pessoas com deficiência e não devemos considerar somente esse aspecto ao falarmos em inclusão e sociedade justa. “As pessoas com deficiência/s têm muita dificuldade, também, no âmbito das relações. E creio que essa é a maior barreira imposta para/em nós, pessoas com deficiência/s. Entendo que levar a informação é uma maneira importante para se quebrar essa barreira. E as pessoas com deficiência/s terem mais espaços para ocuparem, serem escutadas, olhadas, percebidas e compreendidas. A partir disso, a conscientização da sociedade virá. Além disso, as políticas públicas voltadas para pessoas com deficiência/s também são fundamentais para garantir nossos direitos, que não são privilégios e, sim, nossos direitos.”
 
Com relação ao envolvimento da Psicologia nos debates sobre deficiência, Vitória vê importantes avanços. “A consulta pública que está sendo feita pelo Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas do Sistema Conselhos de Psicologia, para entender melhor a atuação das psicólogas relacionadas a atendimentos de pessoas com deficiência, a inclusão de pessoas com deficiência nas gestões dos Conselhos Federal e Regionais são algumas conquistas importantes. Estamos aos poucos ganhando um espaço necessário também para construir e fazer nossa profissão.”
 
 
Saiba mais:
Protocolo de biossegurança temático - Avaliação psicológica e uso de testes psicológicos: cuidados técnicos e éticos antes, durante e após a pandemia. Publicação produzida pela Comissão de Avaliação Psicológica e GT Biossegurança Covid-19 do CRPRS, disponível em crprs.org.br/publicacoes.