REPORTAGEM ESPECIAL

A potência dos testemunhos: rompendo silenciamentos para que não se repita

No ano em que o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, completa 10 anos, o CRPRS destaca nesta reportagem a importância do testemunho para a Psicologia e para a construção de uma memória coletiva. Seja no desastre da Kiss, na pandemia da Covid-19, na ditadura civil-militar, no extermínio de populações e em outras situações de violências e traumas, o testemunho surge como potente ferramenta para romper o silenciamento. É preciso falar, manter a memória viva, para que não se repita.

A psicóloga Maíra Brum Rieck (CRP 07/14840), Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA, idealizadora e coordenadora do Museu das Memórias (In)Possíveis e integrante do projeto Clínica do Testemunho, fala da importância do testemunho para a história. “O testemunho vem para dar conta dos discursos invisibilizados, o discurso dos vencidos, o discurso das margens da história oficial. Por exemplo, se os sobreviventes dos campos de concentração nazistas não tivessem tido a coragem de falar, hoje não saberíamos do genocídio ocorrido na Segunda Guerra. Se os torturados da ditadura civil-militar brasileira não tivessem testemunhado, não saberíamos dos crimes cometidos pelos militares. O mesmo acontece em casos como os crimes ocorridos nas “grandes” obras feitas pelo Estado que, em nome de um suposto desenvolvimento, destroem vidas, outros modos de existir, produzem ecocídio, etnocídios, como por exemplo, os crimes de Mariana e Brumadinho ou os da hidrelétrica de Belo Monte.”

Para Maíra, a Psicanálise tem o compromisso ético de “dar escuta e questionar a forma como nos relacionamos no espaço público e colocar no campo discursivo as vozes apagadas”. “Sabemos que o tempo em que vivemos é sempre recheado de disputas discursivas e de poderes, o que gera restos. Restos de discursos, restos humanos, pessoas que deixam de ser consideradas humanas. Ser “neutro”, portanto, é manter silenciados os que estão silenciados e manter no poder os que estão no poder. A neutralidade na nossa profissão serve aos poderosos. A psicanálise não surgiu para isso. Ao contrário, Freud era o maior questionador das amarras sociais, crítico às guerras e à aniquilação do outro. E era quem sabia escutar. Não escutava somente os sujeitos “individualmente”, sabia que os sintomas também eram criados pelo laço social e vinham denunciar a forma desse laço.” 

O caso Kiss representa a continuidade de crimes cotidianos e banalizados no Brasil. “Os jovens que estavam se divertindo naquela noite em uma festa estavam sendo instrumentalizados para a geração de lucro de forma criminosa. O descaso com a segurança, a corrupção para manter aberto um lugar que deveria estar interditado, são irregularidades que matam. Estamos habituados a isso no Brasil, é normatizado o absurdo e o descaso com a vida humana. O poder público, que deveria fiscalizar, corrompe-se, muitas vezes, para manter a máquina da corrupção girando e os de sempre enriquecendo. Não consigo deixar de pensar que a instrumentalização humana se deve à invasão europeia e à escravização de humanos indígenas e negros. Somos descendentes de genocidas e não lidamos com isso. A versão atual dessa psicopatologia é a instrumentalização do outro para lucrar indiscriminadamente. Vimos isso também recentemente nas vinícolas gaúchas que escravizaram e torturaram pessoas”, afirma Maíra, reforçando a necessidade de se escutar quem “viveu a Kiss”.

“Perda de amigos, amores, sonhos, perda de si mesmo. Mesmo quem sobreviveu àquela noite, morreu naquela noite. Não voltaram a ser o que eram. Saber que se é um instrumento, um nada, um matável no mundo, saber efetivamente, no corpo, é uma experiência sem volta. É por essa razão que o veredito de culpa é tão importante. E aqui parece ter um nó entre discursos, um nó que precisa começar a ser desatado: o discurso jurídico se impõe como verdade, quando sabemos, no Brasil, que quase nunca encontramos justiça no Judiciário. Temos que entender que mesmo que os responsáveis pela boate não tenham tido a intenção de matar, eles tiveram a intenção de matar. E isso não é uma contradição. Quando escolheram brincar de roleta russa com as irregularidades da boate e torcer para que nada desse errado, eles confirmam a intenção de matar e a indiferença com a vida”, destaca Maíra. 

Para a psicóloga Vanessa Solis Pereira (CRP 07/13753), mestra em Educação, documentarista, Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, do Instituto APPOA, do Museu das Memórias (In) Possíveis, do Coletivo Testemunhos da Pandemia e do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, “o testemunho tem a função de coletivizar a dor para que esta se torne dizível, suportável, e até mesmo esquecível”. Na medida em que alguém se põe a escutar e acolhe um testemunho, o sujeito pode ir aos poucos “se liberando” da dor que interdita. Gestos mínimos de pequenos esquecimentos se tornam possíveis apenas neste compartilhamento, uma aposta de inscrição no social, e que possibilitam um porvir, um laço com o futuro. “O que se passa aí é uma responsabilização pela memória coletiva. Vai formando-se uma rede de amparo que costura os fragmentos perdidos, tece com o outro os fios que constroem uma narrativa, uma memória. E assim podemos carregar o outro e ao mesmo tempo sermos carregados por ele.”

Na contramão da ideia de “seguir adiante” em relação à pandemia da Covid-19, surge o coletivo Testemunhos da Pandemia (saiba mais em https://bit.ly/ testemunhosdapandemia), que pretende caminhar na direção de uma possível inscrição do luto coletivo, entendendo- o como um ato ético e político, de memória e reconhecimento. “Queremos nos dar o direito de nos enlutar coletivamente, à retomada de uma coletivização do sofrimento e das estratégias de sua elaboração. É nessa reelaboração do campo simbólico que cada uma/um pode amarrar seu processo singular, abrir espaço para a tessitura dessa experiência tão recente e ainda inacabada, fazer registro do que ainda mal conseguimos nomear e, principalmente, emprestarmos voz aos testemunhos”, explica Vanessa.

No caso da tragédia da boate Kiss, lembrar e resgatar a memória significa lutar para que esta tragédia não se repita. “Inúmeros acontecimentos que vieram antes e depois da Kiss são impressionantemente uma repetição do acontecido: artefatos pirotécnicos proibidos em lugares fechados, o uso de espuma tóxica, superlotação, lugares mal projetados, sem a sinalização adequada que indicasse as saídas de emergência, com um número muito grande de vítimas fatais e sobreviventes.”

Para Vanessa, se não houver justiça e mudanças efetivas nas leis e regulamentos nas medidas de proteção e, principalmente, se não houver transmissão do ocorrido e compromisso coletivo com a memória, a história tende a se repetir. “O que fica calado/apagado de um trauma insiste em retornar na tentativa de uma elaboração do vivido. Retorna como inibição ou sintoma, de forma transgeracional. Por isso, esses trabalhos na cidade, nas ruas, de âmbito público, se tornam fundamentais. São eles que vão tecer o fio da transmissão de um testemunho, que vão ajudar a dar lugar à dor sem alimentá-la de forma nociva/destrutiva. A proposta é a de uma construção coletiva sobre o trauma, fazendo memória e furo no muro do descaso e do desamparo.”

A psicóloga Caroline Santa Maria Rodrigues (CRP 07/14315) compôs em 2013, a pedido da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, a equipe que auxiliou no suporte emocional ao desastre ocorrido em Santa Maria. A avaliação inicial teve como identificação a ação comunitária por meio de grupos de apoio voluntário, grupos de salvamento e resgate das vítimas. “Com relação ao apoio psicológico, propusemos um modelo de acompanhamento aos familiares das vítimas baseado na formação breve de psicólogas/os voluntárias/os que ali chegavam para prestar os primeiros auxílios. O objetivo foi avaliar as preocupações e demandas dos familiares, as situações de risco, as reações agudas ao estresse, a articulação com os recursos de apoio e a realização de assistência prática”, explica.

Após essa análise, os grupos se dividiram em outras frentes de trabalho e verificou-se a necessidade, junto à Secretaria da Saúde, de manter aberto permanentemente o Centro de Atendimento Psicossocial de Santa Maria e de Porto Alegre, município com grande transferência de pacientes vítimas do incêndio. “Logo que retornamos à Capital, iniciamos o processo de estruturação do Centro de Hospitalidade. Para além de um local de referência para atendimento de familiares, entendemos que este espaço deveria estar articulado com a rede local, compondo um trabalho desempenhado em equipe”, lembra Caroline.

Caroline acredita que lembrar o ocorrido é legitimar e dar voz ao luto vivenciado por todos nós. “O luto das famílias e dos amigos que perderam 242 jovens naquela noite e o luto coletivo vivido pela sociedade devido ao impacto desta tragédia marca nosso estado pra sempre. Lembrar está diretamente relacionado a lutar por justiça. Essa que a gente aguarda na esperança de que os 242 mortos não tenham partido em vão. Que a dor do luto seja legitimada e minimizada pelo reconhecimento da Justiça.” 

Ligiane Righi da Silva, mãe de Andrielle, vítima da boate Kiss, reforça que esse acontecimento não pode ser esquecido. “Não podemos deixar cair no esquecimento, para que nenhuma outra família passe o que estamos passando. Lutamos, hoje, pela prevenção, para que algo mude. Os jovens têm todo o direito de sair e se divertir, mas com segurança, e é essa mudança que queremos. O lançamento da série da Netflix e a visibilidade que o caso ganhou foram benéficos para conseguirmos exigir justiça novamente. A única coisa que eu quero é que não caia no esquecimento”, afirma. Para ela, o acolhimento vem sendo a grande marca da atuação da Psicologia ao longo desses 10 anos. “Quando a gente não tá bem, tem sempre alguém por perto para conversar, desabafar.”

O psicólogo Diego Aram Meghdessian Bedrosian (CRP 07/35263), mestrando em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), analisa e discute em sua dissertação os efeitos psíquicos decorrentes do genocídio armênio, realizado no ano de 1915 por parte dos turcos-otomanos.

“Penso que o testemunho surge como um caminho possível frente aos impasses colocados nas lógicas de comprovação, representação e negacionismo. Subverte a lógica perversa da historiografia positivista tradicional, que define o que é prova e o que não é, desdenhando os testemunhos. Inspirado por Seligmann-Silva, acredito que o testemunho pode abrir um novo campo ao contrapor-se aos moldes de representação. Todo testemunho é singular e é ao mesmo tempo uma modalidade de memória. O testemunho pode abrir a possibilidade de criar formas de voz para experiências emudecidas. Implica em reposicionar a fala do sujeito e os relatos das experiências vividas em reconhecimento, o que pode constituir uma via de simbolização ou de elaboração do que foi vivenciado”, declara Diego, reforçando a importância da Psicanálise ao considerar “a singularidade sob o risco de negligenciar a experiência humana e reiterar violências e traumas”.

Em sua dissertação de mestrado, Diego busca, por meio da análise de restos testemunhais e narrativa de sobreviventes do genocídio armênio e dos seus descendentes, ampliar o debate sobre essa questão, articulando os conceitos de trauma, desmentido e testemunho.

“O trabalho pensa a ética do testemunho como via de resistência frente às consequências do não reconhecimento desse genocídio. Nessa perspectiva, entende-se que o testemunho pode produzir um contorno do trauma produzido por essa catástrofe ao possibilitar circunscrever o real com palavras. O testemunho surge, portanto, como fundamento para a reconstrução da História e das histórias silenciadas por meio do negacionismo. Busquei, por meio dessa pesquisa, dar memória ao evento de maneira a promover elaborações afetivas em um “lembrar ativo” em relação ao passado e, consequentemente, um espaço de reconhecimento, possibilidade ao luto e simbolização de vida. O não-reconhecimento é um fator que continua a assassinar, perpassar e atualizar o genocídio do povo armênio. O genocídio armênio não pode ser silenciado e deixado de lado. Fazer essa pesquisa foi como mergulhar em um lugar incômodo, de muitas dores - não só minhas -, numa tentativa de promover discussões, questionar, analisar e realizar um ato político de não deixar essa temática no esquecimento. Pretendo que esse trabalho sirva para lembrar que as dívidas com o passado continuam a produzir efeitos nefastos e atualizações daquilo que se tenta negar e censurar. As barbáries não podem ser esquecidas para não serem repetidas.”

 

Testemunhos na construção de práticas antirracistas

Para a Psicologia, a nomeação pela palavra é muito importante também na construção de práticas antirracistas, como nos mostra o conselheiro vice-presidente do CRPRS e presidente da Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais, Ademiel de Sant’Anna Junior (CRP 07/22834).

“Em muitos momentos, nós, pessoas negras que enfrentamos cotidianamente os efeitos do racismo na pele, sofremos pelo marcador do silêncio como tática de manutenção dos privilégios da branquitude. É preciso compreender que o racismo e o sexismo são opressões estruturantes e herdeiras do colonialismo. No Brasil, especificamente, a estratégia operativa do colonialismo é sustentada por uma “pactuação de silêncio”. No período da escravização, por exemplo, ocorreu um dos primeiros grandes silenciamentos na história do Brasil. O Cais do Valongo servia para separar as pessoas escravizadas, que chegavam nos tumbeiros ao Rio de Janeiro, da população branca da corte. A dinâmica era simples: o que os olhos não veem, o coração não sente. Desse modo, a preocupação da corte não era com as pessoas negras traficadas para o Brasil, mas com o que o contato com elas poderia representar. Instalam-se, então, os silêncios No entanto, principalmente a partir do feminismo negro e dos ensinamentos de Patricia Hill Collins, passamos a compreender a importância da “autodefinição” como modo de produzir, para além da narrativa de si. A narrativa para si e para os seus. Tramando uma rede de autocuidado em que nenhuma mulher negra larga a mão de outra mulher negra que não larga a mão das travestis pretas, que não largam a mão dos homens gays pretos. E o uso da palavra, a nomeação dos processos para nosso povo pode significar a ruptura com os “pactos mortíferos de silêncio”. Pois, parafraseando Audre Lorde, mulher lésbica feminista negra: “é preciso falar porque o silêncio não vai nos proteger.”

 

Saiba mais:

  • Leia na íntegra o relato de Caroline Santa Maria Rodrigues sobre a organização do Centro de Hospitalidade em Porto Alegre, em 2013, acesse aqui.
  • Para conhecer mais sobre o Museu das Memórias (In)Possíveis e suas coleções, acesse: https://museu.appoa.org.br