REPORTAGEM ESPECIAL

A Psicologia e as diferentes infâncias

Toda a complexidade e pluralidade que envolve as infâncias e seus diferentes contextos são desafios constantes para a Psicologia. De que forma a infância é atravessada por aspectos como gênero, raça e classe? Como trabalhar a saúde mental considerando realidades de vida tão distintas? De que forma a infância é vista por diferentes culturas e o que a Psicologia tem a aprender com isso? Essas são algumas reflexões que propomos nessa reportagem da EntreLinhas.

Para a psicóloga Jacinta Antoniolli Testa (CRP 07/39542), que atua como psicoterapeuta e acompanhante terapêutica (AT) de crianças, adolescentes e adultos e é membra co-fundadora do projeto de extensão “OCUPAS: Cidades, Resistências e Produção de Subjetividade” da UFRGS, independentemente do serviço em que se está – seja ele direcionado às infâncias ou não – a promoção de saúde das crianças está sempre em jogo para a Psicologia. “Na medida em que atuamos com pessoas adultas, famílias, cuidadoras/ cuidadores, instituições e territórios, também estamos incidindo sobre a infância. Então, quando se pensa nas tarefas da Psicologia para o cuidado das infâncias, é fundamental refletir sobre a Psicologia nos mais diversos contextos, entendendo que ela carrega consigo uma responsabilidade onde quer que esteja.”

Jacinta reforça a multiplicidade que envolve o conceito de infância: “Por mais que a ciência psicológica tente a todo instante encontrar categorias generalizáveis, não há uma única infância. Há algo de múltiplo e singular em cada infância. Considerando as dimensões de gênero, raça e classe na constituição das crianças e das suas realidades, por exemplo, percebemos como os preconceitos historicamente construídos na sociedade brasileira desenham diferentes possibilidades para a infância.

Em territórios marcados por uma política de segurança pública violenta e beligerante, em que o Estado só se faz presente armado, que infâncias são possíveis? Por meio do medo, das balas “perdidas” e da desigualdade social, as armas do racismo e do colonialismo impactam crianças negras, indígenas e periféricas. Assim, tentam subjugar seus corpos e, também, sua experiência da infância.

As crianças que se encontram às margens – das normas de gênero, raça e classe – podem ser crianças? Em contextos de melhores condições socioeconômicas, reformulo a pergunta: as crianças que preenchem seus tempos com atividades hipercalculadas, tentando alcançar metas escolares astronômicas ou ideais sociais inatingíveis, que infância têm?”, questiona.

De acordo com a psicóloga, é preciso atribuir à Psicologia a responsabilidade social na reivindicação da infância, no combate às desigualdades e na promoção de saúde, educação e cidadania das crianças. “A fim de atuar na promoção da saúde mental das diferentes infâncias, há que se defender o direito das crianças serem crianças – de brincar, se divertir, se conectar, errar, explorar o mundo e a si. Para tanto, temos que ter cuidado com visões patologizantes, culpabilizantes e individualizantes. A Psicologia, além da intervenção individual, deve atuar no fortalecimento das comunidades, que são necessárias ao cuidado das crianças. É por meio da intervenção nos contextos de vida, nos territórios e nas relações que se promovem as condições necessárias para a saúde das infâncias.”

Ainda segundo ela, as políticas voltadas para a infância, bem como a atuação das/os psicólogas/os, devem se dar na interseção entre saúde, assistência, educação, cultura e política urbana, possibilitando que as redes locais reconheçam e invistam nas potencialidades de cada território. “Entendendo que diferentes territórios produzem diferentes infâncias, não basta orientar o indivíduo ou a família enquanto núcleos apartados de seus contextos: a fim de promover a saúde das crianças, é necessário que os territórios sejam eles próprios campos de escuta e intervenção.”

Sobre os espaços públicos disponíveis na cidade, Jacinta reflete sobre a forma como essas diferentes infâncias os acessam. “Por meio da construção coletiva e da atenção aos territórios, garante-se que as famílias – e, sobretudo, as comunidades – tenham o apoio e as ferramentas necessárias para o cuidado das crianças. Ainda, escutando o que as crianças têm a dizer sobre si e sobre os espaços onde vivem, podemos ver como a sua potência não está reservada apenas para o futuro. As crianças podem ser, no presente, protagonistas de suas próprias vidas. Mantendo viva a infância em sua potência, podemos vê-la como uma fonte de movimentos, aprendizados, experimentações e possibilidades. Pergunto a nós, psicólogas/os: estamos abertas/os a, além de intervir na infância, com ela aprender?”

No campo das políticas públicas voltadas para a infância, Jacinta observa a manutenção de uma certa premissa que considera as crianças como símbolo do futuro e, com isso, a tendência em se investir em aparatos que as preparem para quando forem adultas. “As crianças acabam sendo tomadas como meros objetos de intervenção estatal. Deposita-se nas infâncias uma expectativa de desenvolvimento e transformação socioeconômica, para que assumam, apenas então, o protagonismo do país. No entanto, além de questionável por si só, essa premissa nos afasta de algo importante: a existência e a participação social das crianças no presente. As crianças, sujeitos de direito, têm muito a dizer sobre os espaços em que vivem. Suas necessidades e seus desejos devem ser escutados desde o agora. Para além de investimentos projetados para o futuro, então, é preciso fazer valer o que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): as crianças e adolescentes já são cidadãs/ cidadãos. E, como tal, têm direito a ter direitos: à vida, à saúde, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à liberdade, à dignidade e à convivência familiar e comunitária. E, ainda, as crianças têm o direito de serem crianças”.

Sandra Djambolakdjian Torossian (CRP 07/04565), doutora em Psicologia e professora da UFRGS, ressalta a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por ter sido a primeira legislação que trata todas as crianças por igual. “Antes, tínhamos o Código de Menores – com viés higienista e de classe – mas que não era aplicado de forma abrangente. Não atingia crianças de classe média ou alta e era voltado às crianças pobres, negras, indígenas”, lembra. Hoje, apesar de a legislação ser a mesma para todas, é inegável a existência de diferentes infâncias e a aplicação da lei de forma também diferente: “crianças que habitam diversos espaços da cidade, que têm diferentes propostas educacionais, são olhadas, vistas e tratadas de modos distintos.”

As desigualdades sociais e culturais que temos no Brasil atravessam o conceito das diferentes infâncias. “Na época da Lei Áurea, com a ‘libertação’ das crianças, não houve a criação de uma política pública universal, voltada a todas as crianças, e isso ecoa até os dias atuais. Temos várias infâncias: uma herdeira da escravização, sem proteção do Estado; e as crianças ditas ‘de bem’, de ‘boas famílias’. Há, portanto, uma forte questão racial – as crianças negras ou indígenas são olhadas pela sociedade e pelo Estado de maneira diferente. E, em um país democrático, isso não deveria ser assim.”

Sandra destaca que qualquer violência contra as crianças é uma situação de desamparo que precisa ser acolhida por pessoas que entendam e não neguem o que está sendo dito. “Esse acontecimento, que já foi violento, ao não ter o apoio e a credibilidade dos adultos, pode se tornar traumático. Diante disso, o brincar, algo comum a todas as crianças, é o jeito que elas têm para se expressar e nós, psicólogas/os, temos que escutar esse brincar como uma fala. E é na própria brincadeira que podemos fazer intervenções terapêuticas e reparadoras ou de promoção à saúde, como espaços de diversão e para brincar na cidade. No campo da Psicologia, o brincar é ferramenta de trabalho.”

Para Fabíola Giacomini (CRP 07/09687), psicanalista, mestra doutoranda em Educação e pesquisadora na área, o papel da Psicologia na promoção de saúde mental na infância é algo que deve ser pensado a partir do reconhecimento de que uma criança se desenvolve e se estrutura psiquicamente e a partir das suas relações, de seu contexto e de sua história. “Essa compreensão deve estar integrada em cada gesto, em cada intervenção que vamos produzir, seja atuando como psicólogas/os escolares e educacionais, seja na construção de avaliações psicodiagnósticas e no trabalho clínico. No efetivo cuidado com a infância é preciso ter nítido que, sempre que colocamos o diagnóstico na frente da criança, incorremos no risco de patologização da infância e sua consequente medicamentação. Para fazer frente a isso, ao estar diante de uma criança com dificuldade, não devemos reduzir nossa ação em averiguar os sintomas, em aplicar testes e escalas para definir o nome da patologia. Dar nome de patologia não significa ‘saber’ sobre a criança. Para conhecer uma criança precisamos disponibilidade afetiva para estar com ela, para brincar com ela, para brincá-la, que é o que efetivamente nos permite entender sua conflitiva e avaliar sua capacidade de resposta a partir do vínculo. Além disso, precisamos conhecer sua história – a história de seus vínculos e de seu contexto de vida e entender quem são seus adultos de referência.”

Fabíola afirma que um gesto de cuidado dessa natureza é um trabalho que só a Psicologia tem a possibilidade de ofertar, pois é um gesto com potência de construir com a criança uma experiência estruturante e elaborativa singular. Como contraponto, enfatiza que nossa categoria precisa compreender a fundo o sentido de medicalizar e patologizar a infância, na medida em que tal fenômeno surge a partir de uma posição reducionista sobre como se estrutura o psiquismo, e se funda no não reconhecimento da prioridade do outro de referência da criança nessa estruturação. “Um ponto central é ter o cuidado de não reduzir as dificuldades da criança ao mau funcionamento de seu cérebro. Um segundo ponto é o de que nem todo diagnóstico na infância precisa ter um CID (Código Internacional de Doenças), e muitas vezes, quando assim é feito, produz efeitos iatrogênicos do ponto de vista da estruturação subjetiva da criança. Ou seja, marca e empobrece a construção de sua identidade. A Psicologia tem uma contribuição decisiva na construção de processos de despatologização quando não compreende a criança de forma isolada, mas reconhece que, nessa criança em desenvolvimento, há um sujeito de desejo se constituindo, e serve de suporte a essa travessia de construção singular. Também contribui com intervenções capazes de preservar a infância da invasão do mundo adulto, ao mesmo tempo que convida a criança a crescer e projetar-se no futuro com valor.”

A conselheira presidenta do CRPRS, Míriam Cristiane Alves (CRP 07/24471), que também integra a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO), explica que compreender as culturas infantis de terreiro e sua complexidade civilizacional é fundamental para a construção de políticas públicas. “Para nós, de tradições de matriz africana, criança é ação, é protagonismo, é brincadeira, é movimento futuro no presente. No terreiro, a criança pode se expressar em qualquer corpo-sujeito: adulto, infantil, entidade ou divindade. ‘Criançar’ para desenformar certezas instituídas e alargar percepções de mundo, potencializando novos jeitos de viver.”

De que modo o “criançar” está presente no cotidiano das nossas comunidades tradicionais? Que culturas infantis emergem do nosso terreiro?

“Precisamos nos permitir, sentir o que enunciam esses territórios tradicionais enquanto resistência, preservação e materialização simbólica e concreta do complexo cultural negro-africano que se mantém vivo e incorporado à sociedade brasileira”, cita a presidenta do CRPRS, reforçando a importância de se compreender o terreiro como um locus civilizacional de África reterritorializada – para compreender o modo de ser e estar no mundo das infâncias de terreiro.

 “Quando tudo isso transborda para além do território protegido de nossas comunidades, enfrentamos a violência, o racismo, o racismo religioso. Nossas crianças passam a não poder expressar quem elas são nos espaços públicos, nos espaços por onde circulam, como escolas, postos de saúde, praças. Se ousam transgredir, elas sofrem. Isso precisa ser modificado. Precisamos criar dispositivos legais que protejam nossas infâncias e que as culturas de terreiro sejam mantidas e visibilizadas pelas políticas públicas”, afirma.

A conselheira Priscila Góre Emilio, (CRP 07/23970) indígena kaingang, fala da importância da infância para seu povo. “É o período em que as crianças estão em fase de aprendizagem cultural, momento em que os avós são os professores da língua, costumes e tradições indígenas. É na observação e vivência que se aprende a ser kaingang: vendo, sentindo, comendo e praticando técnicas de artesanato, remédios do mato, coletas de frutas, comidas e cultivo da terra. Para nós, povos originários, a primeira infância é a forma de convivência na família, a composição de quem somos e as maneiras de olhar o mundo dentro de casa e, consequentemente, da comunidade, sendo repassado também sobre nosso papel no coletivo, no cuidado mútuo. É papel dos Kofa, que são nossos velhos, o ensino primeiro de como nos encontrar como seres vivos em transformação na comunidade. A criança indígena kaingang reflete o poder ancestral de sabedorias que ultrapassam gerações por meio da língua e das práticas culturais ao redor do fogo de chão e das falas cantadas, choradas ou assoviadas, das memórias mais queridas repassadas como forma de ensino e aprendizagem cultural. Eles que ensinam como entrar em contato com a natureza, a pedir permissão para entrar na mata e cuidar dela.”

A importância da terra e do território para a infância e para o bem-viver indígena é ressaltada por Priscila. “Uma das vivências mais queridas são dos dias de chuva, em que as crianças kaingang confeccionam bonecos de argila e entram em contato com a terra, que é extensão de quem nós somos. Falar de terra e território é falar do nosso corpo, do nosso espírito. É estar uma conexão milenar que nos conecta com o passado, presente e futuro. Por isso é que lutamos pelo território demarcado, que precisa ser garantido para que nossas crianças sigam na construção de suas identidades. Pois além da convivência coletiva, existe essa conexão com o território sagrado que nos traz alimento, lugar no mundo e nos ensina sobre o cuidado com a outra pessoa e com o nosso corpo.”

Nossas crianças indígenas precisam ter seus territórios demarcados para que possam brincar por meio dos banhos de rio, da coleta de alimentos tradicionais na mata, pois é com essas vivências que elas se enxergam e se sentem no mundo. O primeiro ensino vem dessas vivências, no trançado dos artesanatos, ao identificar as diversas cores das cestarias e das penas, ao identificar o som dos animais, ao saber que a natureza é uma biblioteca viva e que suas mães e suas/ seus avós são suas/seus primeiras/primeiros professoras e professores.”