RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Por uma Psicologia sensibilizada às demandas advindas das situações de emergências e desastres climáticos

Luciana Barcellos Fossi | CRP 07/14667
Conselheira do CRPRS, servidora da Prefeitura de Dois Irmãos

Na madrugada de 16/06/2023 parte do estado do Rio Grande do Sul foi assolada por um ciclone. E não imaginava que a noite mal dormida devido aos ventos e fortes chuvas daria sequência a semanas de trabalho acolhendo vítimas desse ciclone. Vez ou outra alguma forte chuva trouxe situações pontuais de estragos no município de Dois Irmãos, mas não havia na cidade, até então, registro de enchentes da magnitude do dia 16.

Logo ao amanhecer, recebi inúmeras mensagens de amigas/os, colegas de trabalho, psicólogas/os da rede privada em busca de uma mobilização para atender às vítimas da enchente resultante da passagem do ciclone. Rapidamente, pessoas da sociedade civil se organizaram, mobilizando um ginásio e voluntariado para receber, organizar e distribuir doações. Servidoras/ servidores do município da área da saúde e da assistência social também estavam integradas/os a esta ação imediata.

No transcorrer da tarde do dia 16, as vítimas da enchente começaram a chegar ao ginásio em busca de auxílio. Alguns rostos conhecidos, de pessoas que já eram usuárias do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) onde atuo, estavam entre os que ali chegavam, cobertas de barro, molhadas, incrédulas com a situação em que se encontravam. Escutei atentamente ao relato de cada pessoa. Desde o instante em que a água começou a entrar, depois a tentativa de salvar móveis e eletrodomésticos, até o desespero total de ver tudo indo, literalmente, “água abaixo”: bens materiais, memórias afetivas e a sensação de segurança que se tem nisso que representamos como “lar”.

Essa escuta imediata, que pode ser considerada como primeiros cuidados psicológicos, deve, primordialmente, escapar de todo e qualquer clichê que possa ser dito para alguém que tem algum dano material: “Vai passar, tu compras de novo, isso se reconstrói”. A escuta de pessoas vítimas de emergências e calamidades parte da premissa de que a dimensão da perda é subjetiva, que emocionalmente há uma fratura, um vazio pelo que se perdeu, do ponto de vista simbólico. Esse é o primeiro aspecto que fundamenta a necessidade do preparo de equipes de saúde para situações como esta. Reduzir ou até mesmo calar a dor de quem passou pela experiência de se sentir absolutamente vulnerável às intempéries climáticas e que conseguiu salvar apenas a própria pele é atuar na contramão da demanda psicológica das vítimas.

O ano de 2023, definitivamente, trouxe para a Psicologia e para o Poder Público a discussão sobre emergências e calamidades, já que tivemos índices trágicos de ciclones e enchentes e, portanto, um recorde de vítimas em nosso Estado. Por óbvio, essas situações mobilizam a atuação da sociedade civil, que voluntariamente se organiza, mas, dadas as proporções e recorrência de tragédias climáticas, as políticas públicas precisam ser repensadas, considerando essa demanda que infelizmente se apresenta.

No contexto da atenção psicossocial, o cuidado às vítimas de calamidades deve levar em consideração as vulnerabilidades envolvidas. Em Dois Irmãos, avaliou-se que o melhor local de intervenção e escuta seria o próprio local das residências atingidas, já que as vítimas não conseguiam deixar suas casas, com a esperança de encontrar ou salvar algum objeto importante, de retomar o cotidiano e sua tranquilidade. Assim sendo, este contexto do cuidado em saúde mental tem um potencial desinstitucionalizante das práticas convencionais dos CAPS. O cuidado no território, abordagens coletivas com familiares e vizinhança e a garantia do acesso desburocratizado aos serviços são necessárias após a desmobilização da sociedade civil. Muitas vítimas relataram que após três ou quatro semanas se sentiram “abandonadas”. É preciso ter a noção de que as dificuldades de quem perde sua casa e seus bens materiais duram muito tempo, que há uma necessidade de continuidade e processualidade do acompanhamento dessas famílias.

Portanto, é inegável que as práticas da Psicologia no contexto das políticas públicas devem se sensibilizar às demandas advindas das situações de emergências e desastres, a fim de prevenir situações de agravamento das condições sociais e de sofrimento psíquico das/os afetadas/os por catástrofes. Por último, cabe salientar que as ações iniciais promovidas por voluntárias/os são de extrema importância, mas que cabe ao Poder Público garantir a continuidade das ações de atenção e cuidado para com a população, bem como uma efetiva integração de atores das políticas públicas de saúde e assistência social com a defesa civil, na organização dos fluxos e ações.