REPORTAGEM ESPECIAL

 

A Psicologia e as emergências climáticas

Enchentes, secas, queimadas, calor extremo e suas consequências são exemplos de emergências climáticas com as quais a sociedade irá conviver, cada vez mais, nos próximos anos. A Psicologia das Emergências e Desastres, área relativamente nova, é convocada a refletir sobre esses cenários e de que forma afetam a saúde mental, principalmente das populações mais vulnerabilizadas econômica e socialmente, dentre outros cruzamentos, como etnia, raça, classe e gênero.

A psicóloga Jessica Gomes Santiago (CRP 07/28847), mulher preta, de axé, especialista em Saúde Pública pela ESP/RS e mestranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, que atua na Política da Assistência Social, no Serviço Especializado em Abordagem Social (Ação Rua), na região do Arquipélago em Porto Alegre, fala sobre o papel da Psicologia nesse contexto. “Profissionais da Psicologia, no âmbito da Política da Assistência Social e na perspectiva de atuação multiprofissional, têm a escuta como principal ferramenta de acolhimento nesses contextos, compreendendo os diversos fatores que contribuem em um quadro de intensa fragilidade emocional, acentuados ou ocasionados por eventos climáticos, em que em algumas situações resultam no falecimento de algum familiar e/ou pessoas próximas e na perda total ou parcial de bens materiais. É importante ressaltar que não é realizado atendimento clínico, mas os atendimentos/ acompanhamentos às famílias não se desprendem de intervenções que também têm caráter terapêutico. Nesse sentido, é necessário à/ ao profissional da Psicologia realizar o acolhimento e os devidos encaminhamentos que colaborem para a proteção biopsicossocial dos sujeitos, corresponsabilizando-se junto aos demais dispositivos da Rede Socioassistencial e da Saúde, assegurando o acesso a programas e serviços que auxiliem em seu fortalecimento enquanto sujeito e, principalmente, no que se refere à garantia de direitos”, explica.

Jéssica cita a importância do trabalho multidisciplinar diante de situações de alagamentos, como as vivenciadas recentemente pela população da Região das Ilhas em Porto Alegre. “A atuação da Defesa Civil, do CRAS e outros serviços situados no interior das Ilhas facilitou o acesso de moradoras/es para atendimentos socioassistenciais e de saúde, assim como a mobilização de lideranças comunitárias e movimento de quem mora nas Ilhas, de forma protetiva à população atingida pelas enchentes. Nos encontramos em articulação e mediação constante tanto com os demais equipamentos da ponta e outras instâncias institucionais da Política da Assistência, para a continuidade no acesso à garantia de direitos das populações atendidas, que ainda sofrem com as consequências desses constantes eventos climáticos que foram devastadores em alguns territórios, geográficos e psíquicos.”

Bernardo Dolabella (CRP 04/35566), doutorando em Saúde Coletiva pela Fiocruz-MG, mestre em Psicologia pela UFMG, pesquisador de Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres e Emergências em Saúde Pública, membro do Observatório Mineração, Desastres & Saúde – Fiocruz e da Comissão de Psicologia Orientativa de Emergências e Desastres do CRP de Minas Gerais, ressalta a necessária preparação da Psicologia para atuar diante de cenários de emergências e desastres. “A primeira etapa seria investir em uma ampla formação da categoria, sendo necessário inserir disciplinas nas grades curriculares dos cursos de Psicologia. Isso permitiria que o tópico fosse apresentado de maneira aprofundada e com tempo suficiente para o conhecimento ser absorvido, muito diferente do que vemos atualmente quando ocorre um desastre. Durante a fase de resposta (diante de uma emergência já estabelecida), o que geralmente é possível, são formações rápidas para as pessoas que já estão em campo. Importante ressaltar que, mesmo que a/o profissional não tenha um interesse prévio no tema, existem algumas situações em que não há a opção de não se envolver. Profissionais de Psicologia que residem e atuam em cidades atingidas por eventos climáticos extremos muitas vezes não têm como não se envolver na resposta e no atendimento à população. Após a etapa de formação, o caminho segue para a inserção das/os profissionais nas políticas públicas, em funções que atuem nas fases de gestão de risco, ou seja, antes do evento crítico. Isso corresponderia, por exemplo, a profissionais de Psicologia vinculados/as à Defesa Civil e participando do planejamento das ações de prevenção, mitigação e preparação, ou mesmo nas políticas públicas da saúde e assistência social, com participação na construção dos planos de contingência e de ação para possíveis situações de desastres. Atualmente a Psicologia é convocada a atuar principalmente na fase da resposta e precisamos começar a atuar nas fases anteriores, preventivas e preparatórias, para diminuirmos o impacto inicial de um desastre, como também para melhorarmos a eficiência e capacidade de responder ao evento.”

Bernardo acredita que, para essa construção e organização das políticas públicas, é fundamental considerar características do território, pensando em alternativas que preservem o espaço e as informações das pessoas atendidas pelo serviço, e trabalhar na organização das equipes para se adaptarem diante de qualquer cenário de desastre. “Uma política pública precisa estar no território, próxima à população que é atendida, mas se essa estrutura for atingida por um desastre e se tornar inoperante, uma parte considerável da capacidade de resposta é perdida. Então, é necessário pensar em como organizar o serviço dentro de um território exposto a desastres, de forma que ele se mantenha pelo menos parcialmente funcional durante a fase de resposta. Além do serviço possuir dados importantes sobre a população do local, ele também é uma referência para a população e, provavelmente, serão nesses serviços que buscará ajuda e orientação. Outra questão complexa a ser pensada para toda e qualquer política pública diz respeito à prevenção. Por mais que nosso trabalho tenha como foco a prevenção do desastre, sua ocorrência é imprevisível. Mesmo que tenhamos a informação de que as chuvas de final de ano geralmente provocam inundações significativas, nós não sabemos nem onde nem de que forma elas irão ocorrer, e se isso acontece até em um evento que é de certa maneira previsível, a situação fica muito mais complexa quando pensamos em fenômenos mais raros ou impossíveis de prever. É impossível implementarmos um serviço que esteja preparado para lidar com todas as possibilidades de cenários e ainda ter que lidar com sua carga de trabalho normal. O que tem sido proposto, em alguns países, é que diante da incapacidade de prevenir a ocorrência do desastre e preparar as equipes para lidar com um cenário específico, que a equipe seja capacitada não com foco nos cenários, mas de maneira a avaliar e se adaptar rapidamente ao cenário, ações e qualificações com foco em análise de risco, comunicação, engajamento comunitário e planejamento, para citar alguns. É um processo muito mais complexo do que estamos acostumados no Brasil, mas que tem apresentado resultados interessantes em outras partes do mundo. Seria bem significativo ver essa implementação nas políticas públicas brasileiras.”

O psicólogo Marcelo Moreira Cezar (CRP 07/21158), mestre em Psicologia Social pela PUCRS, doutor em Persona i Societat en el Món Contemporani pela Universitat Autònoma de Barcelona e professor na UFN, trabalha com pesquisas no âmbito de práticas sociais e processos rurais. Ele destaca a importância de se pensar a saúde mental para além do contexto urbano, especialmente quando pensamos nas emergências climáticas.

“Historicamente nós temos um fazer psicológico voltado aos grandes centros urbanos, às realidades urbanas. Precisamos pensar nos modos de vida das pessoas fora desses contextos, especialmente para as que vivem em áreas rurais, uma vez que que os sujeitos que vivem ali têm características diferentes envolvendo questões econômicas, da relação própria com o meio ambiente, com a terra e com as tecnologias, e o acesso aos serviços será distinto. Temos o SUS, que é amplo e universal, mas as pessoas do meio rural geralmente precisam se deslocar até os serviços em centros urbanos, há uma questão de mobilidade e de acesso que precisa ser considerada. Nisso, é importante que a Psicologia vá até esses sujeitos e pense na saúde mental fora do contexto urbano e das aglomerações.”

Marcelo explica que temos no Brasil uma “nova ruralidade”, um movimento em que as pessoas estão saindo das áreas urbanas em busca de outros modos de vida. “As pessoas estão indo para as áreas rurais, buscando aluguéis de cabanas por temporadas, por exemplo, procurando novas formas de se relacionar com a terra, ou seja, estão explorando a área rural como um elemento econômico de refúgio, saem da cidade como um processo de autocuidado. Nesse sentido, as emergências climáticas irão afetar a saúde mental de todas as populações, atingindo o/a trabalhadora/o rural ou agrícola e essas pessoas que estão consumindo esse espaço de ruralidade.”

 

Por uma saúde mental na perspectiva de cada território

Um relato do Núcleo Bem-Viver Indígena: Psicologias Indígenas e Corpos Territórios do CRPRS

Davi Kopenawa, no livro ‘A queda do céu’ (2010), profere que o céu vai cair sobre a nossa cabeça. Mas, afinal, o que Kopenawa quer nos fazer refletir? Essa liderança nos alerta para cuidarmos do planeta e não apenas nós, povos indígenas, mas todas as pessoas. Isso porque as emergências climáticas e os desastres nos provocam diariamente insegurança e inquietações, trazendo a certeza do quão expostos estamos diante de ameaças, sejam elas provenientes de fenômenos naturais, ou melhor dizendo, não tão naturais (terremotos, chuvas torrenciais, estiagens), assim como avanços tecnológicos (vazamentos em usinas nucleares, acidentes no transporte de produtos químicos).

As florestas vêm sendo destruídas, a água poluída e os animais sendo mortos, o meio ambiente adoecendo dia após dia. Nos convencemos de que, na realidade, não estamos indefesos frente às ameaças, mas sim, nós mesmos nos vulnerabilizamos, enquanto os kujá e kofás de dentro das comunidades indígenas vêm avisando sobre um colapso da terra. É um ultimato, o presságio de que o céu vai cair se faz mais do que necessário para abrirmos os olhos. Se continuarmos extraindo até a última gota de recursos naturais do nosso planeta, não existirá mais vida na terra, as fontes de alimento e água pura se esgotarão.

‘Ideias para adiar o fim do mundo’, ‘O amanhã não está à venda’ e ‘Futuro ancestral’ nos trazem um pouco da história do impacto brutal dentro de territórios indígenas que vêm sendo dizimados há mais de 523 anos. A humanidade está cada vez mais se acomodando e isso causa um intenso deslocamento entre a mãe Terra e civilização “moderna” e cosmopercepção.

Indígenas de várias etnias têm se inserido no mercado de trabalho, em especial na Psicologia, somando-se na luta por uma saúde mental na perspectiva de cada território. A ampliação da atuação da Psicologia das Emergências e Desastres ocorreu a partir da parceria com a Defesa Civil, que hoje vem se somando com equipes multidisciplinares na busca de trabalhar e fortalecer sobre o denominado estresse pós-traumático.

É necessário que a Psicologia aprofunde suas especificidades, expandindo o conhecimento sobre o tema emergências climáticas, tornando esse um campo de estudo, para colaborar com eventos adversos de desastres e emergências. Considerar a intervenção psicológica respeitando as particularidades e especificidades em emergências e desastres como estratégica é, portanto, estreitar laços de como, quando e onde essas intervenções ocorrerão e como podem ser evitadas.

Não podemos esquecer que as emergências climáticas são produto e processo contínuo da transformação, do crescimento da sociedade e de fatores sociais e ambientais ligados a maneiras de viver. Falar sobre bem-viver indígena é falar sobre demarcação de terras indígenas, para a garantia da sobrevivência não só dos povos indígenas, mas de toda a humanidade. Ao mesmo tempo que devemos defender a Amazônia, precisamos lutar em defesa da vida das pessoas que dedicam seus corpos para sua proteção: os povos indígenas. Por isso, o compromisso da Psicologia com a situação climática global é tão importante, pois diz respeito à garantia dos direitos humanos, a garantia do mundo continuar existindo.

Quando citamos a defesa da Amazônia, não estamos falando da defesa de apenas um território indígena, mas de todas as terras indígenas que estão sendo dizimadas e tomadas pelo agronegócio.

Quando falamos em cuidado, seja físico, mental, espiritual, emocional ou territorial, estamos falando em valorização da vida e essa valorização vem por meio da construção, do tecer redes para a promoção do bem-viver.

Podemos refletir a partir das palavras de Yolanda Macuxi: “Lutar pela vida; pelo nosso mundo. O nosso mundo é diferente do mundo dos brancos. Nós nos conectamos com a natureza. Sabemos que há o espírito da mata, das águas, das serras. Esses espíritos estão no nosso meio e estão gritando e às vezes tiram a vida de um e de outro. Precisamos entender o que está acontecendo com o nosso mundo”. Ela diz que, para nós, povos indígenas, é da terra que provém tudo o que precisamos, mas devemos cuidá-la assim como nossos ancestrais a cuidaram para que todos, todas e todes possam viver bem.