PERSPECTIVA

 

Por uma articulação coletiva, intersetorial e no território

As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em setembro de 2023 exigiram uma organização local imediata da Psicologia. A psicóloga Gisele Dhein (CRP 07/15814), docente da Universidade do Vale do Taquari (Univates), em Lajeado, onde integra o Grupo de Saúde Coletiva, é mestra em Psicologia (PUCRS), doutora em Educação (UNISC) e tesoureira da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) e contribuiu com essa articulação no território. Em entrevista para a Entrelinhas, Gisele ressalta a importância do trabalho coletivo e intersetorial nesse processo.

Qual o principal desafio para atuação da Psicologia em contextos de emergências climáticas?

Um grande desafio que enfrentamos é a prevenção. O Brasil, em geral, não tem uma cultura de prevenção, pois muitas vezes isso envolve investir em algo que pode nunca acontecer. No entanto, quando acontece, os danos são significativos. Assim, a Psicologia tem o desafio de pensar estratégias coletivas de prevenção. O clima e as catástrofes decorrentes dele nos convocam a ações interdisciplinares, sendo que em alguns campos da Psicologia esse processo ainda é muito incipiente. Há necessidade de percebermos que o ambiente também pode afetar nossa saúde mental.

Nesses contextos, qual a importância de a Psicologia realizar um trabalho intersetorial?

Vejo uma grande fragilidade da nossa profissão: trabalhar de forma intersetorial. Há uma dificuldade de trabalho com não psicólogas/os ou até mesmo com psicólogas/os que não são da mesma área.

Observamos que o próprio Estado, diante das últimas enchentes, iniciou o trabalho com ações isoladas, de diferentes áreas (saúde, assistência social, educação) e entidades (universidades, Médicos Sem Fronteiras, Força Nacional do SUS, Defesa Civil). Porém, percebeu-se que todos deveriam atuar de forma integrada. Um laudo da Defesa Civil, por exemplo, que mostra o risco de uma família continuar em sua casa, provoca tensão e adoecimento. A Psicologia precisa fazer parte dessa avaliação, precisa avaliar não somente os riscos psicossociais, mas também atentar aos riscos ambientais. Psicólogas/os que atuam em municípios que enfrentam situações de risco ambiental devem contribuir na construção de planos de contingência e participar desse trabalho para também compreender o que é um risco ambiental.

Existem áreas propensas a deslizamentos, a inundação ou riscos de incêndio devido à seca e isso também gera mortes e preocupações. Precisamos, então, comunicar esses riscos e educar a população para que as pessoas compreendam que talvez seja necessário, em determinado momento, evacuar suas casas, por exemplo. No Vale do Taquari, algumas das mortes ocorreram porque as pessoas resistiram a deixar suas casas. Isso exige um trabalho de educação que vai além da conscientização; há elementos nesses comportamentos que, com certeza, a Psicologia tem a contribuir com as equipes interprofissionais, na busca de ações interdisciplinares.

Conte um pouco como foi esse trabalho interdisciplinar no Vale do Taquari?

A principal tarefa das equipes multidisciplinares é avaliar riscos, prevenir, identificar áreas seguras e preparar equipes. As intervenções iniciais se concentram mais na identificação coletiva, embora também considerem questões particulares. O trabalho mais individualizado começa em uma segunda etapa. Em situações de emergência, como a que vivemos, as primeiras semanas são de identificação mais coletiva, antes de passarmos para o trabalho mais individualizado. Isso exige uma mudança da compreensão de que a Psicologia pode ser praticada de diversas formas, não se restringindo apenas à psicoterapia. Temos um imaginário social sobre o fazer da profissão que ainda é muito do indivíduo para o indivíduo. Há outras formas de se fazer Psicologia.

Como vem sendo a organização do trabalho das políticas públicas após as enchentes que atingiram o Vale do Taquari?

Com relação ao eixo psicossocial, em que estão profissionais da saúde, temos trabalhado com pessoas de referências do Estado para cada município, profissionais que têm feito esse acompanhamento semanalmente. Esse eixo é composto por representantes do Estado, pelo Centro Regional de Saúde do Trabalhador (Cerest), pelos Médicos Sem Fronteiras (até final de novembro, pela Força Nacional do SUS que esteve no primeiro mês) e pela Universidade do Vale do Taquari (Univates), que é demandada quando necessário. A Univates tem uma relação muito forte com o território, o que foi fundamental para atuar nas questões relacionadas às emergências no Vale.

É importante ressaltar que essa organização pós-enchente tem sido distinta em cada município. Percebemos uma diferença na recuperação da saúde mental da população nos locais em que as equipes de saúde permaneceram em seus territórios de origem das que foram desalojadas devido à destruição das unidades de saúde. A intervenção e a ação acontecem de formas diferentes em cada um desses casos.

Cabe destacar que as escolas vêm desempenhando um papel importante nisso, pois a rotina é uma estratégia para crianças e adolescentes lidarem com a situação. A relação com a família e a comunidade ajuda a ressignificar o processo. A segunda etapa se concentrará nas pessoas que já tinham questões de saúde mental anteriormente. As equipes acompanharão essas situações mais a longo prazo, pois alguns problemas podem se agravar. A atuação em território é essencial, e agentes comunitárias/os de saúde têm desempenhado um papel fundamental nisso. A 16ª Crdenadoria de Saúde tem compartilhado suas experiências, ajudando a redesenhar a rede de atenção à saúde e a entrada da Psicologia nesses cenários. No entanto, cada município tem autonomia para organizar esse trabalho.

Qual foi o grande desafio na administração da equipe de voluntárias/os que atuaram no Vale do Taquari?

O grande desafio é entender que essa emergência é um problema que precisa ser administrado pelas políticas públicas e pelo Estado. Observamos muita dificuldade de algumas/alguns voluntárias/os de saber que numa crise também existe uma gestão; há pessoas de referência crdenando todos os trabalhos, seja limpar as casas, distribuir comida ou roupa. Como teremos outras catástrofes climáticas, precisaremos muito do trabalho voluntário e temos que educar a população para isso. Há critérios e uma gestão desses processos, que precisam ser respeitados.

O que ficou de aprendizado?

Aprendemos demais nos últimos meses com a dor. Percebemos que pela frente não temos apenas desafios ambientais, mas também desafios comportamentais e políticos que precisam ser abordados de maneira interdisciplinar. A Psicologia precisa se envolver nesses cenários de emergências e desastres, compreendendo aspectos ambientais, sociais e políticos. Precisamos seguir discutindo como nossas cidades estão se organizando e como a Psicologia pode se envolver nesse desafio.

Qual a importância de os cursos de graduação em Psicologia trabalharem na formação de profissionais para atuarem em emergências e desastres?

Acredito que a Psicologia não está prestando a devida atenção à formação para atuação nesses contextos, especialmente ao trabalho de prevenção e gestão, tão necessários. Temos profissionais com uma boa formação, principalmente no âmbito do que podemos chamar de “saúde secundária”, ou seja, para agir quando o problema já está instalado e o processo de adoecimento já começou. Focamos muito, ainda, no trabalho clínico tradicional de psicoterapia e há uma grande disposição de voluntárias/os para isso, com práticas voltadas para atuação privada e para o atendimento individual.

Quando pensamos na atuação da Psicologia em eventos ambientais e climáticos, temos que repensar o processo formativo, olhar quais habilidades e competências precisamos desenvolver mais. Temos que pensar em conteúdos interdisciplinares, já que o evento climático não é algo isolado, e precisamos contar com o conhecimento de outras áreas. Trabalhar com prevenção, diagnóstico e gestão no contexto em que futuras/ os psicólogas/os irão atuar.

De que formas as Diretrizes Curriculares Nacionais da Psicologia aprovadas recentemente poderão contribuir para essa mudança na formação de novas/os profissionais?

As novas Diretrizes Curriculares Nacionais nos mostram que precisamos repensar alguns aspectos da formação. Cada vez mais, o projeto de formação de cada universidade precisa estar vinculado com a região em que está inserida. A formação da Universidade do Vale do Taquari, por exemplo, precisa estar voltada para a questão ambiental, rural e migrações. Pensar na realidade geográfica, cultural e social.

Há a necessidade de incluir abordagens também sócio-culturais e não somente biomédicas nos currículos. Precisamos olhar para o contexto social. Acredito que a formação deve ser voltada para os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), valorizando o trabalho em rede e intersetorial. O sujeito que está preparado para trabalhar na lógica do SUS está apto para trabalhar em qualquer ação. Isso não quer dizer que, se formamos para o SUS, a/o psicóloga/o terá que atuar nas políticas públicas. Acredito que estará mais preparada/o para atuar em diversos contextos: organização, escola, comunidade ou até mesmo no consultório. Outro ponto que precisa estar presente nos currículos é a gestão do cuidado em saúde.

Observamos isso na prática aqui durante as enchentes. Os municípios que têm esse “saber do SUS” mais internalizados conseguiram responder à crise de forma mais rápida, reorganizando suas equipes, realizando diagnósticos de território, informando as áreas e famílias atingidas.