ENTREVISTA



Psicóloga com mestrado em Educação e doutorado em Psicologia, Helena Beatriz Kochenborger Scarparo,
em seus 32 anos de atuação na PUCRS, tornou-se referência nas áreas da história da Psicologia e
Psicologia Comunitária. Em 2019, ao comemorar 45 anos de sua fundação, o CRPRS quer resgatar o contexto
em que a Psicologia surgiu como profissão regulamentada e como foram constituídos os Conselhos Federal e
Regional de Psicologia e, para isso, contará com as lembranças de profissionais como Helena que, além de
pesquisar sobre o tema, foi conselheira do CRPRS na gestão de 2004 a 2007. Nesta entrevista, destaca a importância
da instituição estar sempre aberta às diferenças para que a profissão se fortaleça cada vez mais.

A Psicologia deve garantir a possibilidade 
do pensar diferente


Em que contexto a profissão foi regulamentada e como foram criados os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia?

A regulamentação da profissão, em 1962, aconteceu em plena Guerra Fria, tempo marcado pela divisão comunismo-capitalismo e pela necessidade de manutenção de um mundo sem guerras. Isso influenciou a produção de conhecimento e as práticas decorrentes e legitimou espaços e atribuições para cada área. Essas reestruturações em nível global repercutiram no contexto político brasileiro da época e contribuíram para fortalecer os movimentos de oficialização e para consolidar a regulamentação da Psicologia. Assim, o modelo do antagonismo excludente comunista-capitalista se associava às práticas psicológicas: normal-patológico, apto-não apto etc. Ao mesmo tempo, eram evidentes as crenças nas possibilidades da profissão, recém oficializada, em contribuir com o projeto de nação desenvolvida. Esse processo de oficialização se estabelece às portas de um longo período de ditadura com extensa rede de controle da vida civil.
 

Como o período da Ditadura Civil Militar influenciou a Psicologia? 

Toda a prática humana é datada e as circunstâncias políticas sempre estão presentes em qualquer fazer ou saber humano. Não é por acaso que determinadas ideias circulam com maior força e frequência em determinados tempos/contextos. A atmosfera política de repressão, perseguição e censura promoveu práticas a ela relacionadas. Algumas de acomodação e concordância e outras (felizmente) de resistência aos processos ditatoriais. Mesmo num clima de repressão política, movimentos sociais emancipatórios mundiais influenciavam nas práticas de resistência ao golpe. É o caso dos movimentos antirracista, feminista, do maio de 68, entre outros. Dentre os resultados de pesquisas históricas das quais participei ou coordenei era notório o lugar da Psicologia como legitimadora de comportamentos “normais ou anormais” através de instrumentos da área. Matérias jornalísticas divulgavam pesquisas na área com “comportamentos adequados”, desenhando impossibilidades de crítica às circunstâncias sociopolíticas do país. Nesse sentido, algumas práticas na Psicologia eram úteis à implantação de padrões de comportamentos de conformidade com a ideologia ditatorial. A aplicação de testes, tão em voga nos anos 1960/70, poderia ser instrumento de legitimação das desigualdades, do fracasso individual e da exclusão social. Da mesma forma, as práticas clínicas voltadas para o atendimento a situações de crise se expandiam sem a consideração das questões sociopolíticas relativas a tais crises. A abordagem individualista era preponderante e a capacidade de adaptação figurava como atributo fundamental à inserção do indivíduo na sociedade.
 

 

Como a Psicologia Comunitária surgiu em sua vida?

Quando comecei a lecionar na Faculdade de Psicologia da PUCRS em 1982, fui convidada a participar de um projeto voltado para a melhoria da formação, dentro de uma lógica de aproximar saberes populares e acadêmicos. Nesse projeto, profissionais da faculdade se dedicavam ao atendimento em instituições sediadas em comunidades com população de baixa renda. Assim, fui parar em uma creche na Vila Santa Isabel, em Viamão. Buscávamos produzir um trabalho atento às especificidades do contexto no qual estávamos inseridas. Era uma experiência inusitada para mim e, acredito, para o grupo de colegas sediados em outras instituições do mesmo tipo. A Psicologia Institucional era o suporte que eu utilizava, mesmo assim era difícil compreender os processos cotidianos da população e articular estratégias de acompanhamento no âmbito da Psicologia. Nesse período, Silvia Lane lançou uma coletânea que tinha um capítulo sobre Psicologia Comunitária. Foi aí que pude, enfim, dar nome àquilo que estava fazendo. Depois disso, a Psicologia Comunitária passou a fazer parte da minha vida profissional.
 

E como esse conceito evoluiu ao longo de sua trajetória profissional?

Como pesquisadora, continuei escutando e aprendendo Psicologia. As pesquisas intensificaram meus questionamentos quanto aos projetos sociais que justificam determinadas práticas e quanto à ética que as sustenta. Estudar História da Psicologia foi um modo de aprofundar essa questão e comecei pesquisando os processos de estabelecimento da Psicologia Comunitária no Rio Grande do Sul. O que eu pude observar foram esforços de construção da Psicologia, tendo em vista contextos históricos e políticos que atravessam o cotidiano e a vida social. As possibilidades de efetivar uma Psicologia crítica os brindou com o marco referencial da Psicologia Social Comunitária na qual práticas generalistas e interdisciplinares não podem prescindir de processos dialógicos que considerem a diversidade de saberes, culturas e posicionamentos. A Psicologia Comunitária teve muitas marcas de transformação e tenho orgulho de ter participado de um pequeno trecho dessa história.
 

Quais foram e quais são os principais desafios da Psicologia?

A Psicologia tem e sempre teve muitos desafios em diferentes campos. Um deles é valorizar o conhecimento como ferramenta de emancipação e felicidade. Para isso é necessário pensar criticamente na história que a Psicologia tem produzido e nos modos de vida contemporâneos. Que necessidades e sentidos têm sido produzidos? Que escolhas têm sido feitas? Como são feitas escolhas? Psicólogos escolhem todos os dias: teorias, técnicas, áreas de trabalho, campos de inserção... Espero que psicólogas e psicólogos não percam de vista o fato de que toda e qualquer escolha é política e fomenta políticas. Acho que o desafio maior é fazer Psicologia e não a considerar neutra, nem propositora de normas,mas, sim, mais um modo de pensar visões de mundo,expressar ideologias, discuti-las e tentar efetivar projetos sociais que consideramos fazer a vida valer ser vivida. 
 


De que forma a Psicologia dialoga com temas da atualidade?

Estamos vivendo um momento político complicado no qual a dita polaridade de posições associada a rompantes autoritários não produz diálogos, não estabelece conflitos, mas cria confrontos. Nesses silêncios e vazios – via de regra – são preenchidos com rancores,preconceito e mediocridade. Isso porque muitas pessoas não refletem sobre as posições que dizem ter, apenas estão convictas e tem certezas. Que conhecimentos resultam das certezas? Que mudanças são possíveis com a aversão às críticas? Que ética se fortalece em meio a preconceitos? Que políticas são efetivadas?Temos presenciado nos últimos meses cenas lamentáveis nas quais os direitos humanos são desdenhados e políticas educacionais prometem a “lei da mordaça” nas salas de aula. Seria o diálogo pernicioso aos processos educacionais? Espero que a universidade, apesar das dificuldades, possa gerar espaços de formação que fomentem o estudo e o debate de ideias diversas, especialmente na Psicologia, uma área que não pode prescindir da consideração das diferenças que torna tão mais bonita a vida humana.
 

Como vê o trabalho do Conselho Regional de Psicologia?

O Conselho de Psicologia tem a missão de garantir a permanência da diversidade, dar voz a quem pensa a Psicologia diferentemente da gente. O mais importante é deixar as portas do Conselho abertas para o humano, abertas para as diferenças, para as possibilidades de vida. As instituições devem garantir, de alguma maneira, essa liberdade. Quanto mais diversa a Psicologia for, mais profícua ela vai ser. O Conselho é um lugar onde essa diversidade, essa possibilidade de estar e ser peculiar pode ser garantida e é onde a profissão pode se fortalecer de uma maneira absolutamente livre, honesta, profunda e estudiosa. A Psicologia precisa sim aprofundar seus conceitos, discutir, debater suas práticas cada vez mais, para poder transformar ou ajudar na transformação.