REPORTAGEM PRINCIPAL

 
As diferentes possibilidades de relação da Psicologia com a Justiça devem ser
pensadas sob a ótica da garantia de direitos, considerando as subjetividades
dos envolvidos, a valorização da escuta e os preceitos do Código de Ética profissional.
 

 

Psicologia e promoção de justiça:
um diálogo necessário


A atuação da/o psicóloga/o nas relações com a Justiça pode ocorrer diretamente nos órgãos do Poder Judiciário, nos demais órgãos e serviços vinculados ao Sistema de Justiça (Ministério Público e Defensoria Pública), na Segurança Pública, no Sistema Prisional,  no Sistema de Atendimento Socioeducativo, como peritas/os nomeadas/os, assistentes técnicos, ou, ainda, em outros serviços e equipamentos das redes de Políticas Públicas e Sociais. “A/O psicóloga/o deve compreender que todas as suas práticas e intervenções, independentemente de seu local de atuação, devem agir em consonância ao Código de Ética profissional e em acordo, sempre, com os princípios fundamentais da profissão, assegurando-se da melhor opção pelo instrumental técnico a ser utilizado em cada caso”, define a psicóloga Fabiane Konowaluk Santos Machado, conselheira do CRPRS, especialista em Psicologia Jurídica e que atua com perícia psicológica em Saúde Mental e Trabalho.
 
A perícia psicológica, por exemplo, é um processo de avaliação demandado pelo Poder Judiciário às/aos psicólogas/os. Nesses casos, a/o psicóloga/o perita/o deve atuar sob os parâmetros estabelecidos nas Resoluções do CFP  08/2010 e 17/2012, que balizam a atuação na Psicologia no âmbito do Judiciário, respeitando sempre os critérios teóricos, técnicos, éticos da atuação profissional. Para Fabiane, a/o profissional deve observar que seu trabalho vai além do encontro pontual em uma situação de avaliação situacional. “A/O psicóloga/o deve compreender que a produção de um documento pode ser um instrumento importante no sentido da promoção de justiça social”. Para ela, esse aspecto coaduna diretamente com os princípios fundamentais da profissão e sua expressão resulta em estratégias que podem contribuir para o enfrentamento das desigualdades sociais e a garantia de direitos dos cidadãos. “Torna-se fundamental na relação entre Psicologia e o Sistema de Justiça que a/o psicóloga/o esteja segura/o de que a sua esponsabilidade profissional está, em caráter permanente, intimamente relacionada não só com o serviço em que está atuando mas também que seu trabalho está igualmente implicado com o cidadão em atendimento”.
 
“A/O PSICÓLOGA/O DEVE COMPREENDER QUE A PRODUÇÃO DE UM DOCUMENTO PODE SER UM INSTRUMENTO IMPORTANTE NO SENTIDO DA PROMOÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL”.

Nesse sentido, a/o psicóloga/o deve ter sempre presente a relação do produto do seu trabalho (laudos, pareceres ou outro documento psicológico) com a demanda solicitada e o objetivo da avaliação. “No âmbito do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, por exemplo, quando não é levado em consideração o histórico de abandono e exclusão, além das vulnerabilidades, há o risco de o documento psicológico vir a reforçar esses aspectos e estigmatizar, resultando na desproteção”, destaca Fabiane. Da mesma forma, no Sistema Prisional a avaliação psicológica pode e deve ser um instrumento de garantia de direitos, dentre elas o direito à vida com dignidade, pautada sempre na promoção dos direitos humanos. “Quando um laudo ou parecer se fixa apenas em componentes psicopatológicos e prioriza classificar pessoas e comportamentos, ou até mesmo reforça o encarceramento como solução, considero que o documento psicológico é que tem problemas, não a pessoa que foi avaliada. É um cuidado que a Psicologia deve ter, em uma forma de vigilância permanente em seus atos, para sempre pautar um olhar crítico em relação a discursos que favorecem a exclusão ou o encarceramento em detrimento de nossos princípios fundamentais da profissão, que é defender o tratamento penal humanizado. A compreensão dessa relação resulta no compromisso na atuação ética, técnica, coerente e crítica, tão necessárias à profissão da/o psicóloga/o atualmente.” 
 
Atuando junto ao Juizado da Infância e Juventude de uma comarca de médio porte, na Região Metropolitana de Porto Alegre, especialmente em situações que envolvem a proteção de crianças e adolescentes, a psicóloga Bianca Guaragna Kreisner considera que o trabalho de avaliação psicológica no judiciário deve ser feito por meio da apropriação de elementos prévios e que contribuam na  construção do caso de forma singular. “Essa análise ajuda a entender qual é a demanda para a avaliação e de que forma posso contribuir, a partir do meu saber como psicóloga, atuando na relação com o Direito. A escuta cuidadosa dos sujeitos envolvidos é parte fundamental da avaliação, podendo agregar-se outros recursos, que se fizerem necessários. Em que pese muitas vezes seja determinado que a avaliação seja realizada com uma pessoa em específico,  considero intrínseco à autonomia técnica poder optar por escutar outras pessoas para o entendimento da situação, assim como para a construção de um posicionamento sobre o caso. Conhecer, dentro do que se faz viável, os dispositivos da rede de atendimento em Saúde, Educação, Assistência Social e organizações da sociedade civil que mantenham algum envolvimento no trabalho com as crianças e adolescentes sob proteção – assim como aspectos da realidade social e cultural local – e estabelecer interlocuções intersetoriais também é algo buscado no intuito de qualificação e integração das intervenções, para que ocorram da forma menos fragmentada possível”.


“O MAIS IMPORTANTE É O OLHAR CRÍTICO PARA O PAPEL DA PSICOLOGIA NA INSTITUIÇÃO JURÍDICA: É PRECISO SEMPRE ANALISAR A DEMANDA ENDEREÇADA E, ASSIM, AVALIAR AS POSSIBILIDADES, OS ALCANCES E OS LIMITES DO TRABALHO”.

Para a psicóloga Marina Vilar, que trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o objetivo da Psicologia deve ser de promoção de justiça, em sua acepção mais ampla. “Não se trata de um trabalho clínico. Nossos ‘clientes’ são os usuários dos serviços jurídicos, ou seja, aqueles que apresentam demandas à Justiça ou são inseridos no Sistema de Justiça, devendo ser reconhecidos como sujeitos de direitos, autônomos. Nosso trabalho é de escuta dessas pessoas e análise das possibilidades de atuação, podendo se dar de maneira judicial ou extrajudicial”. A articulação com a Rede de serviços também é citada por Marina como algo imprescindível em sua atuação. “Cada caso que se apresenta é único e envolve diversos atravessamentos. O mais importante é o olhar crítico para o papel da Psicologia na instituição jurídica: é preciso sempre analisar a demanda endereçada e, assim, avaliar as possibilidades, os alcances e os limites do trabalho. A quem destinamos nosso trabalho? Quais os efeitos desta atuação? Cabe pensar em cada caso e de maneira macro. É realidade em nosso país o que chamamos de judicialização da vida, ou seja, a busca pela Justiça para a resolução de diversas questões, tanto de conflitos interpessoais, como de acesso a direitos. À Psicologia cabe a análise  crítica desse processo e pensar em cada caso como pode contribuir para minoração de seus efeitos: diante de demandas pela Justiça, a resposta pode ser o afastamento dos órgãos jurídicos e a aproximação a outros igualmente comprometidos com a Justiça Social; diante de conflitos interpessoais, pode-se buscar a promoção do diálogo e do envolvimento das pessoas nas soluções; diante de pessoas ou grupos em situação de vulnerabilidade, o apoio necessário para a superação desta; diante do não acesso a direitos, a afirmação pela garantia da equidade. Tudo isso pode ser muito transformador - na vida de cada pessoa atendida, na de uma coletividade, assim como nas nossas, como profissionais e sujeitos também inseridos na mesma sociedade.”
 
“ASSOCIADO À EMPATIA, PODEMOS CONTRIBUIR PARA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE REFLEXÃO SOBRE O IMPACTO DA JUDICIALIZAÇÃO NA VIDA DOS SUJEITOS E SOBRE FORMAS ALTERNATIVAS DE RESOLUÇÃO DAS DIFERENTES DEMANDAS”
 
Beatriz Cancela Cattani e Sarah Puthin, psicólogas que atuam como peritas e com avaliações para fins jurídicos, defendem que o papel da/o psicóloga/o nessa interface com o Direito deve ser o de contribuir, a partir de teorias e práticas pertinentes da ciência psicológica, com as demandas e questões trazidas pelo Sistema de Justiça. “Entendemos que a/o psicóloga/o, em sua atuação, deve considerar as subjetividades dos sujeitos envolvidos nos processos legais, ponderando questões contextuais, sociais e culturais. São muitas as possibilidades e os desafios nessa atuação no contexto jurídico. Um dos principais desafios envolve o reconhecimento dos limites do papel da/o profissional diante das demandas do Direito e das possibilidades de atuação, considerando preceitos teóricos, técnicos  e, principalmente, éticos da profissão.” Para as psicólogas, o diálogo é a força motriz do trabalho da/o psicóloga/o nesse contexto. “Associado à empatia, podemos contribuir para a construção de espaços de reflexão sobre o impacto da judicialização na vida dos sujeitos e sobre formas alternativas de resolução das diferentes demandas legais. Nesse sentido, nosso trabalho vai além de simplesmente responder às solicitações advindas do Direto. A Psicologia tem a possibilidade de contribuir com o fortalecimento de um sistema de justiça que não se limite ao âmbito judicial, e que considere as condições psíquicas, históricas, contextuais e sociais do sujeito.”

Valorização do trabalho interdisciplinar

O advogado Conrado Paulino da Rosa, que atua na área do Direito de Família, considera a perícia psicológica imprescindível, principalmente nos processos que envolvem crianças e adolescentes. “A perícia psicológica dá maior segurança ao juiz de que sua decisão vai representar o melhor para a criança ou adolescente. Em casos de alienação parental, por exemplo, percebemos indícios dessa prática que só serão de fato comprovados após a avaliação de um psicólogo.”
 
A valorização do trabalho de outras áreas, como a Psicologia, é expressa no Novo Código de Processo Civil, no Art. 694, que prevê que a ação de direito de família pode ser suspensa para que as pessoas busquem o atendimento de mediação interdisciplinar e também o atendimento terapêutico.“Hoje se consegue ter, por parte do Direito, maior sensibilidade para que saberes interdisciplinares possam ser usados no processo. Porém, ainda existe uma dificuldade de colocar o discurso na prática. Para isso, há a necessidade de que cada um dos atores saia de sua zona de conforto, é preciso escutar um ao outro e isso é um desafio.”
 
A nomeação de assistentes técnicos pelas partes, para acompanhar o trabalho da/o perita/o indicada/o pelo juiz, é um ponto ainda a ser debatido entre as áreas da Psicologia e do Direito. Essa participação é, para o advogado, uma importante estratégia na qualificação da perícia realizada pelo perito nomeado pelo juiz, contribuindo na formulação de quesitos e na qualificação da análise técnica. “Apesar de sempre ser oportunizada essa nomeação nem sempre acontece por desconhecimento ou pelo custo. Porém, acho de extrema importância já que eu, como advogado, não tenho o conhecimento específico para saber se a metodologia aplicada é a mais adequada ou se determinada pergunta foi feita de forma correta.”
 
Nesse ponto, há um impasse entre a Resolução do CFP nº 008/2010, o Novo Código de Processo Civil e a Constituição Federal. “De acordo com a Resolução do CFP os assistentes técnicos não podem acompanhar as entrevistas realizadas pelos peritos, já o Novo Código de Processo Civil e a própria Constituição Federal exigem isso por tratar-se de uma prova pericial”. Esse impasse precisa ser resolvido para que as perícias não corram risco de anulação, o que geraria um prejuízo significativo principalmente para as crianças envolvidas nos processos. 
 
As diversas lógicas que atravessam o processo judicial na busca por caminhos possíveis, como as do Direito, Assistência Social, Saúde Mental, Educação, Gestão Pública, entre tantas outras são desafiadoras. “O processo constitui-se através de situações que se colocam como fatos concretos, muitas vezes divergentes, contribuindo a Psicologia em dar visibilidade e intervir na complexidade das tramas que o envolvem. Aqui se estabelece um cuidado para não tomar como verdades dadas os elementos a que tenho acesso, mas como aspectos norteadores para o trabalho e a construção de uma posição, delimitada num certo tempo, a partir da escuta da subjetividade e da singularidade como principal instrumento”, declara Bianca Kreisner.


Marina Vilar destaca a importância do trabalho entre diferentes áreas, do diálogo e da construção coletiva dos caminhos de cada caso. “Não deve haver subordinação técnica, sendo fundamental buscarmos garantir nossa autonomia técnica em relação às formas de atuação. Não substituímos serviços existentes, mas trabalhamos conectados a esses. Nosso horizonte deve ser sempre a autonomia, a liberdade e a promoção de direitos dos sujeitos, como em qualquer lugar de atuação da Psicologia”. 
Efetivar o trabalho interdisciplinar, especialmente junto aos profissionais do Direito, é desafiador. 
“Ao trabalharmos em instituições eminentemente jurídicas, que diferenciam membros (juízes, promotores e defensores) de servidores, marca-se uma forte hierarquia institucional. Há também a compreensão da atuação jurídica, exercida pelos profissionais do Direito, como a atividade fim da instituição, enquanto a de outros profissionais como atividade meio. Essas concepções podem ser um entrave a um trabalho tecnicamente horizontal, em que todos os profissionais tenham suas funções respeitadas e atuem de maneira conjunta.”

Demandas que chegam nas Políticas Públicas

Prática cada vez mais comum devido à escassez de profissionais atuando diretamente no Sistema Judiciário, demandas por perícias psicológicas acabam chegando às/aos profissionais das Políticas Públicas e Sociais. Fabiane Machado destaca que existem resoluções e notas técnicas expedidas pelo CFP e CRP que vedam essa prática quando há vínculo terapêutico. Além disso, a Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, vinculada ao Ministério da Cidadania, também veda às/aos profissionais que atuam na Assistência Social atuarem como peritas/os por compreender que esse trabalho, pela sua especificidade, só pode ser executado por outras/os profissionais que não aquelas/es que tenham vínculo com a Rede de Serviços.
 
Quando profissionais de serviços como CRAS, CREAS ou CAPS são nomeados para realizar avaliações periciais, eles estão em desvio de sua função, que deveria ser restrita às atribuições como profissionais da proteção social ou do cuidado. “Há aqui o risco de uma hierarquização entre Poderes que deveriam ser autônomos entre si e da fragilização da atuação das políticas públicas, que, já vivem um processo de precarização de sua estrutura”.

Precarização do trabalho

No Rio Grande do Sul há atualmente 18 psicólogas/os judiciárias/os, profissionais do quadro de pessoal do Poder Judiciário com atribuição para atuar junto  às pessoas que são partes em processos judiciais. O Paraná, com o mesmo tamanho populacional, tem 178. Os Tribunais de Justiça de mesmo porte têm roporcionalmente 10 vezes mais profissionais. “O resultado disso é a terceirização das demandas judiciais para profissionais autônomas/os cadastradas/os nos Foros das comarcas – que têm uma remuneração modesta por um trabalho complexo e, não raro, acabam demorando por recebê-la – ou, ainda, o seu desvio para equipes a quem não compete fazer esse trabalho, frequentemente das políticas de Assistência Social e Saúde”, analisa Fabiane Machado. 
 
Para Fabiane, quando se fala em precarização, se trata da retirada das condições mínimas de trabalho dessas/es profissionais, sejam eles do Poder Judiciário ou nas esferas estaduais e municipais. “O resultado do desmonte de todas as políticas públicas e sociais inclui a diminuição crescente de seus operadores, gerando fatores como desvio de função, sobrecarga de trabalho pela escassez de recursos humanos e o que eu chamo de ‘aluguel intelectual’ dos profissionais terceirizados. Cumulada a isso, há uma demanda cada vez mais expressiva da judicialização da vida, que opera também dentro de uma lógica massiva de produção de documentos psicológicos, muitas vezes sem respeitar o seu próprio processo de produção das avaliações. Muitos profissionais têm trazido ao CRP sua preocupação nesse sentido, pois não é raro que num processo judicial seja imposto à/ao profissional a entrega de uma resposta rápida, reduzindo a avaliação psicológica a um parecer meramente opinativo, sob risco de desatenção não só às resoluções e notas técnicas que guiam o exercício da profissão, mas também aos princípios fundamentais preconizados pelo Código de Ética Profissional”, alerta.