REPORTAGEM PRINCIPAL


Aprovada em dezembro, a Lei nº 13.935/2019 determina que o Poder Público assegure o atendimento psicológico e socioassistencial aos alunos da rede pública de educação básica. A norma é fruto do PLC 60/2007 (PL 3.688/2000, na Câmara), aprovado pelo Congresso em setembro de 2019. Mas só passou a valer após a derrubada do veto da Presidência da República ao texto, em novembro. Na justificativa ao Veto 37/2019, o governo havia alegado inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselhos Regionais de Psicologia e demais instituições que compõem o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia (FENPB) e o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) realizaram diversas atividades e mobilizações junto aos congressistas pela aprovação do PL. Foram inúmeras conversas e audiências com parlamentares, mobilização que garantiu a aprovação no Congresso Nacional e a derrubada do veto integral da Presidência.
 

Agora é lei:
Psicologia e Serviço Social
na Educação Básica

A Psicologia tem papel importante para a Educação por desenvolver ações que possibilitam a melhoria dos processos de ensino e aprendizagem e a criação de intervenções que visam à superação de processos de exclusão, patologização e estigmatização social. Para a psicóloga Elisângela Mara Zanelatto, mestra em Ensino, a inserção da/o psicóloga/o na escola deve ser vista como potencializadora de práticas includentes e de garantia dos direitos dos atores envolvidos. Sua atuação perpassa também os processos de formação de professores, momento em que podem ser abordados o desenvolvimento da subjetividade humana, as influências das relações sociais estabelecidas e suas inter-relações com o processo educacional. “À Psicologia cabe contribuir na mediação das relações sociais e institucionais – possibilitando, assim, a criação de espaços de promoção de diálogo e debate com a comunidade escolar – e promover um espaço de respeito às diferenças para o fortalecimento de uma escola democrática que permita a todas as crianças e todos os jovens o acesso ao ensino de qualidade, como forma de garantir os seus direitos. O mais importante é poder, a partir da aprovação desta Lei, ampliar os espaços de atuação para a categoria no contexto da educação básica, de forma que a Psicologia possa auxiliar a superar a lógica de atendimentos individuais, visto que a Psicologia Escolar e Educacional busca promover atividades coletivas nesses espaços, aproximando a comunidade educacional”, analisa.
 
A INSERÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O NA ESCOLA DEVE SER VISTA COMO
POTENCIALIZADORA DE PRÁTICAS INCLUDENTES E DE GARANTIA
DOS DIREITOS DOS ATORES ENVOLVIDOS
 
Na opinião da psicóloga Simone Courel, especialista em Psicopedagogia e mestranda em Psicologia Clínica e da Saúde, apesar de a Psicologia dialogar com a Educação há anos, na prática não havia o reconhecimento da importância dessa/e profissional compondo as equipes de Educação na rede pública de ensino. “Nas políticas públicas brasileiras, a Psicologia tem sido comumente referenciada na Saúde e recentemente reconhecida nas políticas de Assistência Social. É comum, na sociedade brasileira, a representação ou imaginário social da profissão de Psicologia como um fazer clínico ou avaliativo, alimentado pelas demandas em saúde e pelas avaliações psicológicas compulsórias existentes (concursos públicos, trânsito, contexto  organizacional etc)”. Simone acredita que estar inserida/o de fato na política de Educação e nas instituições educativas permitirá uma construção efetiva do fazer da/o psicóloga/o, que é específico e diferente da perspectiva clínica identificada na Saúde, por exemplo. “Garantir a participação dessa/e profissional na política de educação brasileira significa contribuir para uma educação de qualidade, reflexiva, inclusiva, promotora de desenvolvimento e de cidadania. Partindo do conhecimento técnico e científico, favorecer o enfrentamento dos problemas identificados no contexto escolar e contribuir para uma educação de qualidade para todas/os”. 
 
Para implementar a Lei, Simone defende uma força-tarefa junto ao poder público, com a participação de representantes da Psicologia, Serviço Social e entidades relacionadas a essas profissões e à Educação. “Sabemos que cada município precisará se organizar de acordo com sua realidade administrativa e financeira, construindo formas adequadas de viabilizar a presença de profissionais de Psicologia na rede de educação básica”. Como ainda há muita confusão e dúvidas em relação às diferenças entre as práticas da Psicologia Clínica e da Psicologia Escolar e Educacional, precisamos que o papel da/o profissional de Psicologia na Educação do século XXI fique elucidado para não corrermos riscos de práticas que não contribuam para as demandas efetivas de produção de conhecimento, socialização, respeito, crescimento e bem-estar nas instituições educativas”, afirma.
 
O papel da Psicologia nas escolas, auxiliando nos processos de escolarização e de promoção de educação e de saúde, é destacado pelo presidente da Comissão de Educação do CRPRS, conselheiro Vinicius Pasqualin. “É importante que os fazeres da Psicologia estejam alinhados com as propostas das políticas de educação e com o bem-estar do sujeito, promovendo saúde mental”. A aprovação da Lei regulamenta uma prática que já ocorre em vários municípios e alguns estados e legitima o lugar da Psicologia junto à Educação. “A categoria terá o desafio de se entender como profissional da Educação e isso implica em se apropriar das políticas públicas da Educação, do contexto histórico, dos processos de avaliação, e mediar relações com a saúde para não reproduzirmos e/ou promovermos desigualdade social, processos de exclusão e patologização da Educação”, analisa. 
 
Para Vinicius, a implementação da Lei deve ser construída coletivamente com os movimentos de educação. “O papel da/o psicóloga/o na escola foi se tecendo nas relações com as escolas de modo muito individual e, hoje, exige essa construção coletiva. Vale ressaltar que a Lei é para psicólogas/os na rede de educação e não um em cada escola. Historicamente os movimentos de educação sempre lutaram por psicólogas/os na rede como forma de assessoria, o que ocorre hoje nos municípios”. 
 
A psicóloga e deputada federal Shéridan Oliveira explica que a aprovação do projeto é um grande passo no combate à escalada da violência nas escolas, do bullying ou do discurso belicista na internet. “O papel da/o assistente social e da/o psicóloga/o se torna de extrema importância na promoção da saúde mental agindo dentro das escolas para o futuro de toda a sociedade. A Psicologia e o Serviço Social dispõem de conhecimentos importantes para a atuação nas escolas e suas relações, na promoção do respeito e da diversidade e no enfrentamento  da violência e evasão escolar, contribuindo para a evolução da saúde mental da sociedade como um todo”.
 
Assim como a Psicologia, o Serviço Social, no contexto escolar, atua na identificação e no atendimento das demandas sociais das/os estudantes, familiares, trabalhadoras/es e comunidade. “O Serviço Social contribui na aproximação entre escola e família, além de fortalecer a articulação entre a equipe, a rede da educação e outras políticas públicas, tendo em vista a integralidade das demandas dos usuários, suas famílias e comunidade. As/os trabalhadoras/es assistentes sociais também podem contribuir na construção do senso crítico das/os estudantes. Para isso, a/o profissional precisa conhecer a realidade em que as crianças e os adolescentes estão inseridos. Daí a importância de fomentar e compreender os fatores que dificultam o processo de aprendizagem e a participação da família nos processos pedagógicos da escola, bem como alternativas frente a isso”, explica a assistente social Jamille Serres. Cabe ao Serviço Social identificar situações de vulnerabilidade social e violações de direitos vivenciadas pelas/os estudantes, que, de modo geral, culminam na infrequência e evasão escolar, e desenvolver ações, para além das intervenções individuais, pensando a Educação como um direito social que deve ser assegurado para todas/os, de forma articulada com outros direitos da cidadania, como Saúde e Assistência Social, por exemplo. 
 

“A CATEGORIA TERÁ O DESAFIO DE SE ENTENDER COMO PROFISSIONAL DA EDUCAÇÃO
E ISSO IMPLICA EM SE APROPRIAR DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DA EDUCAÇÃO, DO CONTEXTO HISTÓRICO,
DOS PROCESSOS DE AVALIAÇÃO, E MEDIAR RELAÇÕES COM A SAÚDE PARA NÃO
REPRODUZIRMOS E/OU PROMOVERMOS DESIGUALDADE SOCIAL, PROCESSOS DE EXCLUSÃO E
PATOLOGIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO”

Jamille destaca que a Lei representa uma importante conquista, principalmente na atual conjuntura de retrocessos e desmontes das políticas sociais. “Precisamos atentar para as condições de trabalho que são oferecidas à categoria. Por não prever recurso financeiro para a contratação de novos profissionais, a probabilidade é que aumente a sobrecarga, principalmente das/os trabalhadoras/es da Assistência Social, que já atuam em locais precarizados e com escassez de recursos, agravando uma situação que já é difícil na maior parte dos municípios brasileiros”, alerta.

A Educação no Brasil

A história da Educação no Brasil mostra o quanto a luta de classes permeia essa trajetória, em que o sistema educacional serviu para a reprodução do sistema que exclui e classifica os sujeitos. “O próprio tempo de aprovação desta Lei, que tramitava desde 2000, e a resistência pela sua aprovação mostram a dificuldade de realizar investimentos que permitam a implementação de ações promotoras do  desenvolvimento integral do sujeito. A Psicologia tem, diante do atual cenário, o desafio de continuar atuando de forma crítica, técnica e ética para que as práticas propostas no espaço escolar permitam refletir sobre o papel da escola e de todos os atores envolvidos para a criação de estratégias potencializadoras e coletivas que promovam uma escola pública com ensino de qualidade, que produza conhecimentos para a vida, para o exercício de relações saudáveis, de respeito as diferenças, e que promova igualdade social e o exercício ativo da cidadania”, afirma Elisângela Mara Zanelatto. 
 
Para Simone Courel, as políticas educacionais brasileiras, nos últimos 50 anos, têm oscilado entre proposições pedagógicas variadas, porém ainda atreladas a modelos de produção capitalistas e individualizantes, tornando desafiador o processo de se viver a escola como um espaço de inserção social efetivamente emancipador, democrático, igualitário, diverso e, consequentemente, promotor de efetiva construção de conhecimentos e desenvolvimento de todos. “As políticas econômicas e sociais influem diretamente nos rumos da educação e do sistema de ensino. Vivemos numa sociedade plural, diversa, com desafios sociais significativos em confronto com um sistema de ensino estratificado e seletivo. Os desafios para uma efetiva educação coletiva são muitos, envolvendo a todas/os: alunas/os, professoras/es, profissionais da educação, famílias, comunidade, sociedade. Por isso se apresenta como fundamental conhecer as direções éticas e políticas que perpassam o contexto educativo para que projetos de trabalho técnico e científico em Psicologia Escolar e Educacional possam ser elaborados partindo da realidade, das necessidades específicas e caminhando para um processo de construção de conhecimento e de desenvolvimento de boa qualidade para todos”.
 
Vinicius Pasqualin lembra que a Educação é um lugar de disputa política. “O Projeto Político Pedagógico começa com a pergunta: que sujeito queremos formar? É a partir disso que se pensam as estratégias pedagógicas. É importante destacar que estamos num momento em que a Educação é vista como um gasto, sob uma ótica econômica e não pedagógica. Não trabalhar certos temas nas escolas produz processos de exclusão, aumentando a evasão escolar e culpabilizando os estudantes. Precisamos trabalhar para uma educação de qualidade e que promova processos inclusivos alicerçados nos direitos humanos”.