ENTREVISTA


"É com leveza, criatividade e apostando na vida que as/os psicólogas/os devem atuar em um
momento tão difícil como o que vivemos". Assim acredita a psicóloga Débora Noal, entrevistada desta
edição da EntreLinhas. Psicóloga sanitarista, pós-doutoranda em Saúde Mental e Desastres pela FIOCRUZ-RJ,
doutora e mestre em Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde (UnB), Débora desenvolve, desde 2008,
trabalhos relativos ao cuidado em saúde a populações e trabalhadores que vivenciam desastres naturais
(terremotos, furacões, deslizamentos de terra e inundações) e humanos (guerras, conflitos armados e étnicos,
desnutrição severa, migrações e deslocamentos forçados). Compõe a "Equipo Regional de Respuesta en Salud"
da Organização Panamericana da Saúde e atualmente está à frente de pesquisas e estratégias para intervenção
na atenção psicossocial e saúde mental das/os profissionais de saúde que combatem a
pandemia da Covid-19 no Brasil.

Uma prática voltada
ao cuidado da vida

 

Quais os principais desafios que as/os psicólogas/os estão enfrentando com relação à pandemia da Covid-19?
 
Neste momento de pandemia, existem vários desafios que as/os psicólogas/os estão enfrentando, entre eles, a falta de informação e formação para lidar com isso. Lembrando que a maior parte das instituições de graduação, no Brasil, não abordam as urgências, emergências, desastres, catástrofes, eventos críticos e, muito menos, as pandemias para que os profissionais consigam utilizar seus conhecimentos em prol dessas necessidades específicas.
 
Outra dificuldade é a questão do tempo, que é curto, para as/os psicólogas/os oferecerem uma resposta, em tempo real, condizente com a demanda e embasada em evidências científicas. Embora essas evidências já estejam surgindo, nos baseamos, ainda, em outras pesquisas e epidemias, como SARS, MERS e Ebola, que, anteriormente, também mostraram indícios de impacto à saúde mental e na atenção psicossocial.
 
Em uma emergência, as/os psicólogas/os trabalham, normalmente, com a urgência do outro. Com a pandemia, a demanda dos pacientes, como a inquietude, os conflitos, as dúvidas, a dificuldade de controle de infecção, de manter-se no isolamento e de sentir-se sozinho, passa a ser da/o psicóloga/o também. Esse é o grande diferencial de trabalhar nesta realidade, saber primeiro como lidar com o nosso sofrimento para poder ajudar terceiros.
 
A Psicologia vem ganhando mais visibilidade nesta pandemia?
 
Sim, a pandemia deixa claro o quanto a saúde mental e a estrutura psíquica têm impactado diretamente na imunidade do corpo. A imunidade é fundamental para que a gente consiga fazer frente às dificuldades diante de uma doença que ainda não tem cura, como a Covid-19. Eu espero que isso se amplie e dê mais noção às pessoas para que tenham um cuidado mais amplo com a saúde.
 
Como a/o psicóloga/o pode conciliar a necessidade de usar Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e conectar-se com o paciente, demonstrar afeto?
 
Existem muitas formas de utilizar os EPIs e também de se conectar com o paciente. O que eu costumo sugerir é que a gente consiga utilizar a leveza e a criatividade, bom-humor, estratégias que deem a sensação de que de fato nós estamos investindo na vida e não conectados com a morte. Então, é possível, sim, sorrir com máscara e trazer leveza para o cuidado no tom da nossa voz. A prática, agora, precisa estar voltada para o cuidado da vida. Eu posso fazer um crachá com a minha foto e, se atendo crianças, posso fazer brincadeiras, como desenhar um sorriso na minha máscara. É importante que a/o psicóloga/o se sinta confortável fazendo isso, não pode ser desconfortável a ponto da/o profissional pensar que isso não faz parte da forma dela/e de cuidar. Por isso, ela/e tem que ser honesta/o com o paciente. O afeto, nesse tipo de pandemia, é oferecido e demonstrado nos detalhes. São os detalhes que vão deixar evidentes se nós estamos conectados de uma forma mais afetiva, criativa e leve ou se nós estamos mais conectados com a dor e sofrimento.
 
Qual a importância de profissionais que estão na linha de frente cuidarem de sua saúde mental?
 
O cuidado da saúde mental para os profissionais que estão na linha de frente é fundamental, essa é a base do cuidado. Eu preciso cuidar da minha biossegurança e do controle da infecção através dos Equipamentos de Proteção Individual. Mas sem eu ter a sensação de que estou confortável na minha própria pele, que eu tenho ferramentas e instrumentos para lidar com o estresse, com a tensão, com os conflitos, medos e estigmas, é muito difícil de ter uma durabilidade no processo de trabalho. Portanto, é importante que as/os profissionais estejam atentos, mas que os colegas e gestores também ajudem a tentar e a produzir um cuidado em massa.
 
Tão ou mais necessário do que fazer terapia ou receber os cuidados de um profissional adequado, diretamente da saúde mental, é pensar nesses cuidados amplos. Ter seus direitos e suas garantias trabalhistas e noção de protocolos de cuidado, também dialogam com os cuidados da saúde mental, nesta fase da pandemia.
 
 
O que esperar do mundo pós-pandemia?
 
Aquilo que eu devo esperar sobre um período pós-pandemia deve estar diretamente conectado com aquilo que eu faço hoje, em termos de cuidado com a saúde mental, a minha e a dos outros. Lembrando que, quando se trata do ser humano, tudo é imprevisível e não há um método exato para seguir. Então, temos que começar a pensar como podemos nos reconfigurar como ser individual e, também, como humanidade, porque é possível ressignificar, através de construções feitas agora, no presente. 
Em um artigo, por exemplo, publicado este ano, nos Estados Unidos, é observável que quando vivemos momentos extremos, como desastres, catástrofes e conflitos, espera-se que o número de suicídios cresça no primeiro mês, mas a pesquisa mostra que quando a comunidade se junta para discutir cuidados coletivos e pensar estratégias para isso, o número de suicídio diminui para um número inferior ao que era antes do evento extremo.
 
É possível esperar um mundo melhor, mas pra isso é preciso agir, interagir com as pessoas e pensar em propostas. Por isso, eu lanço um desafio para que as/os psicólogas/os gaúchas/os sigam pensando no que podem fazer hoje, como juntar um coletivo maior de profissionais e buscar estratégias que de fato impactem o nosso entorno e que isso faça diferença a curto, médio e longo prazo.
 
De que forma as políticas públicas no Brasil podem se fortalecer para enfrentar situações como a que vivemos hoje?
 
A primeira forma de fortalecer as políticas públicas é pensar em estratégias de implementação. Temos, sim, um sistema que funciona, mas ele vai precisar de investimentos financeiros e, principalmente, e recursos humanos. Pensar em como investir e cuidar dessas/es profissionais que estão na linha de frente, de maneira segura.
 
Tem um artigo muito interessante que fala sobre o que fez a diferença para os trabalhadores chineses no início da pandemia do Covid-19. Ele mostra que quando os trabalhadores conheciam os protocolos de biossegurança, tinham confiança em seus gestores e a sensação de estarem sendo cuidados, sentiam-se encorajados e pertencentes ao processo. Isso faz com que a saúde mental deles tenha um impacto diferenciado, porque eles deixam de se sentir como mecanismos e ferramentas a serem usados, para se sentirem como humanos também.
 
Que dicas você daria para os profissionais da Psicologia que estão atuando ou querem atuar em situações de emergências e desastres?
 
A primeira dica é: estudem, façam curso. Deixo a dica do Curso Nacional de Atenção Psicossocial e Saúde Mental na pandemia Covid-19 – EaD, que montamos na Fiocruz, em parceria com dezenas de pesquisadores do Brasil e de alguns outros a países que foram nos ajudando a pensar cartilhas com recomendações e orientações técnicas para os profissionais.
 
A segunda dica é: interajam em coletivos maiores. Muitas vezes, na nossa profissão, pensamos de uma forma mais individual (cuidar de um a um), mas agora precisamos pensar estratégias conectadas, que deem uma sensação de pertença e amplitude do cuidado. Oferecer atendimentos individuais é importante, mas ancorar isso em instituições, baseados e conectados com políticas públicas é fundamental para gerar um impacto na população que a gente cuida.
 
A terceira e última dica é: olhem para si. O que te inquieta, te mobiliza e te incomoda? O que você faz com isso e, a partir daí, como é possível cuidar de outros?
 


 
Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia Covid-19
 
O Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está desenvolvendo uma série de cartilhas sobre “Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia Covid-19”. As cartilhas estão sendo elaboradas sob a coordenação da diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, e de Débora Noal, como pesquisadora da instituição, e tem a participação dos pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes/Fiocruz). 
 
Com linguagem acessível, o material foi desenvolvido para orientar a população, as/os trabalhadoras/es da saúde e as/os gestoras/es nas tomadas de decisão.
 
Já foram publicadas cartilhas com os seguintes enfoques: recomendações gerais; recomendações para gestores; recomendações para o cuidado de crianças em situação de isolamento hospitalar; paliativos – orientações aos profissionais de saúde; recomendações aos psicólogos para o atendimento online; processo de luto; a quarentena na Covid-19 - orientações e estratégias de cuidado; orientação aos trabalhadores dos serviços de Saúde; crianças na pandemia da Covid-19; violência doméstica e familiar; população em situação de rua; prevenção do suicídio; orientações a trabalhadoras/es e gestoras/es do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
 
Os materiais estão disponíveis no site da Fiocruz https://portal.fiocruz.br.