O Conselho Federal de Psicologia vem manifestar sua preocupação em relação à forma como temas do Plano Nacional de Educação foram tratados pela Comissão Especial, em função das alterações propostas pela Emenda nº 3, do Substitutivo do Senado, ao texto do Projeto de Lei da Câmara nº 103/2012 (nº 8.035/2010 na Casa de origem), que dispõe sobre o PNE e dá outras providências. Ao se retirar do texto a menção explícita ao preconceito e discriminação em razão de origem ou pertencimento regional, étnico-racial, de gênero ou sexualidade, uma pluralidade de vozes e olhares foram silenciadas. Dentre as vozes, preocupa ao Conselho que a informação sobre evidência técnico-científica tenha sido desconsiderada.
As metas e ações previstas no Plano Nacional de Educação (PNE) deveriam ser compreendidas a partir de um quadro normativo mais amplo. Como previsto na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e uma vez que tratam de temáticas concernentes às diversas instituições e sujeitos que compõem o Sistema de Ensino em seus distintos níveis, a formulação de políticas públicas em educação deve estar associada ao compromisso com formas democráticas de gestão e participação. É possível reconhecer no texto os profícuos debates travados nas etapas da Conferência Nacional de Educação ou, retrocedendo-se um pouco mais, os diagnósticos sobre as falhas percebidas no “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação” e no “Plano Desenvolvimento da Educação”. Em maior ou menor escala, ainda que coordenadas pelo Executivo Nacional, os dois processos contaram com a participação e colaboração de representantes de Conselhos de Educação, órgãos do poder executivo – estadual e municipal-, além de pessoas vinculadas a diversas instituições comprometidas com atividades de formação humana.
A incorporação de questões trazidas por fóruns anteriores, convertidas em metas do próximo decênio, aponta para o fato de que, ao se pensar políticas públicas em educação, a arena legislativa deve ser apoiada em suas decisões frente ao conjunto de desafios políticos e sociais envolvidos no processo de escolarização. Nessa direção, este Conselho vem a público manifestar-se no debate para afirmar que, diferentemente do que foi colocado por alguns integrantes da Comissão, questões relacionadas ao racismo, machismo, sexismo e homofobia não estão vinculadas a uma perspectiva escatológica de uma imaginada “ditadura gay”, mas são questões que resultam da desigualdade de acesso à escolarização de vários segmentos majoritários da população brasileira, em especial os negros; e a expulsão da escola de jovens que adotam, como garante a nossa Constituição, crenças ou identidades sexuais diferentes da maioria.
São dilemas que profissionais de educação, comprometidos com uma lógica democrática, enfrentam cotidianamente no desempenho de suas funções. A perversa interseção entre cor da pele e origem étnica, gênero, sexualidade e educação tem sido analisada por diversos institutos de pesquisa brasileiros. Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), UNESCO e Fundação Perseu Abramo têm indicado taxas elevadas de preconceito e de violência originadas por questões específicas como identidades de gênero, pertencimento racial e étnico e regionalidades nas escolas. Mais importante é: todas essas pesquisas apontam que quanto maior o índice de preconceito racial/étnico e de gênero/orientação sexual, menor é o índice de aprendizado revelado pelo índice de desenvolvimento da educação básica.
Aparentemente, a mudança textual operada pela Comissão Especial não leva em consideração os dados das pesquisas acima. A opção pela noção genérica de enfrentamento a quaisquer formas de preconceito e discriminação é claramente insuficiente frente aos problemas até então diagnosticados: há a pressuposição de que, ao se defender o interesse de todos, as partes estariam, logicamente, contempladas. Ocorre, porém, que em temas relacionados a Direitos Humanos é preciso o reconhecimento de uma cena que não é dada logicamente de antemão, mas que se vincula à realidade concreta, cada caso de discriminação do direito à educação e a não discriminação demanda ações específicas.
Como exemplo, podemos simplesmente observar a condução dos trabalhos da Comissão Especial e o conjunto de relações que ali se estabeleceram. Os defensores de uma posição universalista e descaracterizada carregavam, com orgulho, cartazes em que se lia: “Gênero Não!”. Demonstrava-se, com isso, uma nova forma de fazer política na atualidade: pautar temáticas gerais, na certeza de que, nessa generalidade, determinados temas e sujeitos não cabem. Trata-se da defesa de um universalismo igualitário que, paradoxalmente, reforça a manutenção de formas históricas de preconceito e discriminação, nomeadamente o racismo, o sexismo, o machismo e a homofobia em suas distintas dinâmicas regionais. A esse respeito, vejamos algumas análises conjunturais propostas pelo IBGE na síntese de indicadores sociais de 2012:
§ Ao se cruzar raça/cor e remuneração, constatou-se que o rendimento médio das pessoas pretas e pardas equivale a 60% do rendimento das pessoas brancas (IBGE, 2012, p. 140); relacionando-se renda e evasão escolar, estimou-se que os jovens pertencentes ao quinto mais pobre da população têm 14,6 vezes menos chances de completar o ensino médio que os jovens pertencentes ao quinto mais rico (IBGE, 2012, p. 119); considerando sexo e taxas de mortalidade, verificou-se que a probabilidade de morte por causas externas entre homens é quase 6 vezes maior que entre as mulheres (IBGE, 2012, p. 206).
§ Ainda segundo o IBGE, no mercado brasileiro, a população mais escolarizada tende a procurar trabalhos mais formalizados e, ultimamente, as mulheres ocupadas apresentaram um aumento superior ao dos homens tanto no que diz respeito à escolaridade, como à formalização do trabalho (IBGE, 2012, p. 138 – 139). Curiosamente, esse quadro parece não ter se traduzido em igualdade: constatou-se que, entre os mais escolarizados (12 anos ou mais de estudo), a desigualdade de rendimentos é extremamente elevada, dado que as mulheres recebem 59,2% do rendimento auferido pelos homens (Idem, p. 140).
Ações importantes para dar conta da evidência acumulada sobre a importância da escola na diminuição da desigualdade têm sido empreendidas, por exemplo, pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM/PR), Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), que promovem cursos de formação destinados a educadores e gestores de escolas. Esses cursos, ofertados como cursos de aperfeiçoamento (180h) e/ou Especialização Lato Sensu (360h), reconhecem a escola como espaço propício à difusão de estigmas e preconceitos, e também veem seus educadores como atores importantes no combate à discriminação e ao preconceito por gênero, raça, orientação sexual, dentre outros.
Ao se tornarem as análises mais complexas, como se verifica através dos relatórios nacionais e posições consagradas em Conferência Nacional de Educação, as desigualdades, além de simplesmente constatadas, acabam adquirindo forma e especificidade; seu caráter genérico, nesse processo, passa a admitir certa possibilidade de tradução, passa a significar desigualdade de renda, desigualdade regional, desigualdade étnico/racial, compondo diferentes perspectivas sobre nossa sociedade. Nota-se, portanto, que estamos diante de sujeitos e problemas específicos, definidos e analisados a partir de critérios também específicos.
Ressalta-se que a caracterização explícita de problemas a serem enfrentados, antes de tudo, está pautada em princípios democráticos, de pluralismo, de busca de igualdade e justiça social por meio de ações que busquem equidade que responderão a problemas não resolvidos pela nossa democracia representativa. Respeitar a singularidade de cada cenário de discriminação resulta em estratégias consagradas pela evidência técnico-científica brasileira e internacional, dedicadas a colocar em pauta a não representação de vários interesses existentes na sociedade.
Pelo exposto, espera-se que, em plenário, seja retomada a discussão realizada pela Comissão Especial no que diz respeito à manutenção da especificidade do preconceito, adotando-se a redação inicial contida no projeto do PNE.
Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia
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