Com a plateia do Teatro Dante Barone praticamente lotada na tarde de sábado (18/08), a conferência de encerramento do Encontro Gaúcho da Psicologia não poderia sintetizar melhor o espírito da programação elaborada pelo CRP: o ativista João W. Nery, transgênero masculino pioneiro no Brasil, fez um fala política e emotiva ao narrar sua vida, desde as primeiras manifestações de sua transexualidade, ainda na infância, até a cirurgia pioneira – e ilegal – realizada em 1977, que lhe custou a cassação do registro de psicóloga no Conselho Regional de São Paulo.
Nery, cuja apresentação “As subjetividades nas transmasculinidades” foi mediada pela conselheira Priscila Pavan Detoni, presidente da Comissão de Direitos Humanos do CRPRS, e pelo coordenador da Homens Trans em Ação (HTA), Eric Segers, falou em pé durante mais de uma hora para a plateia, apesar do estado de saúde frágil.
Diferenciou didaticamente identidade de gênero (como a pessoa se sente em relação à sua condição natural) e orientação sexual (que representa o desejo em relação aos outros), criticou a invisibilidade das pessoas não-binárias e lamentou que o tema seja tão pouco debatido no Brasil: “aqui ninguém entende porra nenhuma de gênero e de transexualidade”, disse.
Autor do livro “Viagem Solitária”, o ativista se formou em Psicologia mas teve o registro cassado depois que trocou de identidade numa época (final dos anos de 1970) em que a identidade de gênero não era sequer debatida. Como adquiriu uma aparência masculina após várias intervenções reparadoras, era impossível continuar atendendo pacientes com o nome de registro. Nery então obteve uma nova identidade e um novo CPF como se nunca houvesse existido legalmente.
O resultado foi catastrófico: a então psicóloga perdeu o registro profissional, não pôde mais dar aulas e teve de atuar nas atividades mais diversas para sobreviver – ele narra que foi pedreiro, taxista, cortador de tecidos em indústria têxtil, vendedor. De pós-graduado passou a ser considerado analfabeto.
“Fui criado aos trancos e barrancos e não queria crescer porque sabia que meu futuro seria terrível. Mas me formei, lecionei em universidades, tive consultório particular até cair na clandestinidade devido à nossa condição marginal. Os transgêneros existem apenas para atestar que o normal é a cisgeneralidade”, lamentou.
A transição se deu aos 27 anos – hoje João W. Nery tem 68. O ato de coragem solitária inspirou muitas décadas depois a elaboração de um projeto de lei para possibilitar a retificação do nome no registro civil para pessoas transgêneras. O projeto protocolado em 2013 leva o nome do ativista e nunca foi votado – embora o STF tenha autorizado, em 2017, o direito de travestis e transexuais a alterarem o nome e o gênero no registro civil mesmo sem a realização de cirurgia reparadora ou de redesignação de sexo.
O ativista deu uma verdadeira aula sobre gêneros: disse que o grau de masculinidade e feminilidade varia de pessoa para pessoa, criticou a falta de políticas públicas para transgêneros masculinos, que considerou o movimento mais invisível que existe, elogiou os valores femininos, apontou os interesses do capitalismo na cultura do binarismo e afirmou que o machismo oprime também os homens. “É um poder podre”, comparou.
Além disso, denunciou o que chama de “assepsia” praticada contra crianças cuja identidade de gênero não coincide com a condição biológica. “Ninguém fala da pedofilia de pais, irmãos, tios ou avós que praticam o estupro corretivo contra meninas e meninos dentro da própria casa. Nem denuncia mães e pais que expulsam suas crianças devido à identidade de gênero. A sociedade se cala. Por quê? Será que consideram um favor?”, questionou.
A conferência foi marcada pela emoção. Nery fala e anda com dificuldade, o que não o impediu de expor suas ideias em pé, e com um humor refinado, para uma plateia sempre atenta e interessada – ele foi aplaudido quatro vezes durante a apresentação e, no final, chorou com a recepção do público que lotou o Teatro Dante Barone.
Sobre a postura de psicólogas/os em relação a transgêneros, foi taxativo: “psicólogas/os têm de ter flexibilidade de valores e de conceitos, além de ter um grande ouvido para escutar, escutar sem preconceitos”, disse.
Depois da conferência, João W. Nery autografou exemplares de seus livros durante a Feira do Livro do Encontro Gaúcho da Psicologia.
A conferência de João W. Nery pode ser assistida acessando o Canal do YouTube do CRPRS.
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